O que encobre o véu, afinal?

Observam-se dois tipos de reacção que me parecem desadequados: por um lado, um absoluto fechamento, que vê no outro um adversário e uma ameaça à própria cultura; e, por outro, uma pretensa abertura mascarada de tolerância.

Nos últimos anos, alguns países europeus têm legislado no sentido de restringir ou mesmo proibir o uso do véu, nas formas de burca e niqab*, em espaços públicos. Esta legislação, que não consiste claramente numa mera restrição na forma de vestir, ‘encobre’ um conjunto dinâmicas que gostaria de explorar neste artigo. Por detrás destas medidas, reside uma discussão mais profunda acerca do pluralismo na Europa que precisa de acontecer. Todavia, é importante situar essa discussão e recordar alguns dos factos que se têm verificado no contexto europeu.

Nos últimos anos, foram várias as tentativas de dissuasão e erradicação do uso do véu, desde a aplicação de coimas, o corte de benefícios, a sua proibição no trabalho, escolas, hospitais e transportes públicos. Itália, Espanha, Turquia, Bulgária, Rússia, Suíça e Holanda são alguns dos países que começaram por aplicar medidas locais em algumas das suas cidades.  A França, por seu lado, foi o primeiro país europeu a, em 2011, banir o niqab dos espaços públicos em todo o país. Recentemente, a Dinamarca aprovou uma lei nacional que proíbe o uso de véu que cubra a face.

Estas medidas continuam a dar lugar a manifestações de desagrado, envolvendo inclusive as instâncias de justiça europeia e internacional. Em 2014, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, pronunciou-se a favor do governo Francês, afirmando que a proibição do uso da burca e do niqab não viola os direitos das mulheres muçulmanas. Recentemente, no passado dia 23 de Outubro, a comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas pronunciou-se em sentido contrário. Na sequência de uma queixa apresentada por duas mulheres que foram condenadas, em França, por usarem o niqab no espaço público, a comissão considerou a criminalização do uso do véu uma violação e restrição injustificada da expressão do direito de liberdade religiosa. Todavia, pouca atenção foi dada a esta decisão, apesar de ser a primeira vez que as Nações Unidas se pronunciaram oficialmente sobre o aparato legal que tem sido criado na Europa em relação ao uso do véu islâmico.

As razões invocadas para banir o uso do véu que cobre a face resumem-se essencialmente a duas: a possível ameaça à segurança e ao princípio de convivência em sociedade, por um lado, e a opressão da mulher, por outro. Analisemos mais de perto os dois argumentos.

Segurança
Quanto à questão da segurança e convivência em sociedade, não existe, de facto, um contexto relevante de manifesto conflito e violência na Europa que justifique o uso de uma norma proibitiva que vem restringir o espaço e a liberdade das pessoas. Dado que os Estados continuam a ter o direito de exigir a identificação das pessoas em determinadas circunstâncias, a proibição generalizada do uso do niqab, por razões de segurança pública, parece, tal como a comissão das Nações Unidas reconhece, uma medida desproporcionada e injustificada. Além do mais, o argumento de que o rosto coberto impede a convivência social padece de duas omissões. Por um lado, ignora o individualismo que caracteriza grande parte do ocidente urbano, onde raramente as pessoas trocam palavras ou se quer olhares; por outro lado, ignora a realidade de outros países onde a existência do véu não põe em causa a convivência social.

É cada vez mais recorrente no espaço Europeu (e não só), o uso do argumento da segurança para legitimar a aplicação de medidas coercivas que, em princípio, só seriam justificáveis em situações excepcionais. No fundo, em nome da ordem e da segurança, abre-se portas a uma regulação cada vez mais invasiva e controladora da vida das pessoas. E, apesar de todo o aparato normativo, e de um permanente estado de excepção, nada parece mudar.

Opressão
Se, de facto, o uso do véu fosse um sinal de opressão da mulher, não deveria o seu uso ser completamente erradicado, não só do lugar público, mas de todo e qualquer espaço? Aliás, talvez no espaço privado se devesse exigir maior vigilância, dado que a maior parte dos casos de violência e opressão sobre as mulheres acontece em espaços privados. Ao mesmo tempo, a proibição com base na opressão ignora por completo o conjunto de mulheres que escolhem livremente cobrir o rosto. De acordo com a comissão da ONU, a proibição, em vez de proteger as mulheres, pode acabar por conduzir ao efeito contrário, isto é, à exclusão das mulheres dos espaços e serviços públicos e ao seu confinamento no espaço doméstico.

É cada vez mais recorrente no espaço Europeu (e não só), o uso do argumento da segurança para legitimar a aplicação de medidas coercivas que, em princípio, só seriam justificáveis em situações excepcionais

Se as razões que têm sido invocadas para proibição do véu islâmico parecem claramente insuficientes, o que está por detrás desta intervenção coerciva em muitos países europeus?
A questão central que a Europa enfrenta vai para além do uso/proibição do véu, e está relacionada com questões de pluralismo e diversidade cultural e religiosa. A Europa precisa de decidir e repensar esta dimensão que há muito lhe bate à porta. A história do velho continente narra-nos uma variedade de encontros com o “outro”, e nem sempre o modelo adoptado/imposto foi o melhor. Todavia, a situação presente é mais intensa e de maior escala. O multiculturalismo das sociedades europeias é inevitável no contexto global em que vivemos.

Em resposta à inevitabilidade desta realidade, observam-se dois tipos de reacção que me parecem desadequados: por um lado, um absoluto fechamento, que vê no outro um adversário e uma ameaça à própria cultura; e, por outro, uma pretensa abertura mascarada de tolerância, mas que reitera uma posição de superioridade cultural em relação ao outro, não se traduzindo num efectivo acolhimento. Qualquer uma das propostas distorce o desafio que implica a construção de um espaço plural.

O discurso exclusivista que propõe um espaço público monocultural confunde normalmente pluralismo com relativismo. No entanto, o pluralismo, ao contrário do relativismo, requer e afirma a necessidade de estabelecer critérios que permitam a avaliação da vida cultural, onde nem tudo é possível.

O discurso exclusivista que propõe um espaço público monocultural confunde normalmente pluralismo com relativismo. No entanto, o pluralismo, ao contrário do relativismo, requer e afirma a necessidade de estabelecer critérios que permitam a avaliação da vida cultural, onde nem tudo é possível. Por seu lado, o pluralismo também não se confunde com a mera tolerância, que assenta numa avaliação negativa do outro, das suas práticas e pontos de vista.  Mas radica numa genuína apreciação do outro. É verdade que a tolerância é indispensável numa sociedade cada vez diversificada com pontos de vista diferentes da maioria, onde nem sempre concordamos com o outro. Todavia, o pluralismo convida a um outro passo, a um risco maior: a um espaço de diálogo, de apreciação mútua, gerador de múltiplas possibilidades. A lei, contudo, substitui-se a este espaço, inibindo a construção de qualquer espaço de confiança entre as pessoas.

Está ou não a Europa preparada para uma sociedade multicultural? Aceita ou não correr o risco de (re)imaginar um novo espaço de comunhão cultural e social? Ou será esta uma possibilidade ideologicamente naïf? Caso seja, no entanto, um espaço realizável, o pluralismo terá de encontrar a sua forma ou modelo, diferente do relativismo, tolerância, e do exclusivismo cultural. Talvez essa forma seja a do poliedro, como sugere o Papa Francisco na exortação apostólica A Alegria do Evangelho (cfr. 236): “… que reflecte a confluência de todas as partes que nele mantêm a sua originalidade. Tanto a acção pastoral como a acção política procuram reunir nesse poliedro o melhor de cada um. (…) É a união dos povos que, na ordem universal, conservam a sua própria peculiaridade; é a totalidade das pessoas numa sociedade que procura um bem comum que verdadeiramente incorpore a todos.”

*Neste artigo, sempre que se usa o termo véu refere-se ao uso do véu nas formas de burca e/ou niqab.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.