A noite é um lugar intrigante, enigmático, ambivalente. Se ela “é mais pura do que o dia”, se “é melhor para pensar, amar e sonhar”, se à noite “tudo é mais intenso, mais verdadeiro”, se à noite “o eco das palavras que foram ditas durante o dia assume um significado novo e mais profundo” (Elie Wiesel), a noite também é lugar dos medos e dos perigos, do desconhecido e da escuridão. A noite, física ou existencial, está presente na nossa vida, como algo, ao mesmo tempo, temível e indispensável.
Ao contemplarmos a história da salvação encontramos um curioso paradoxo: Deus, que tem um fuso horário próprio, é claramente noturno. O Deus que é Luz e em quem não há nenhumas trevas, o Deus que fez a luz e chamou dia à luz e noite às trevas, o Deus que é Senhor do dia e da noite, parece ter pela noite uma predileção especial. Talvez seja porque a noite lhe dá mais trabalho e o desafia como uma ausência que reclama a sua presença, a sua ação e o seu amor. Deus ama a noite e tem aí o cenário privilegiado dos grandes e dramáticos acontecimentos da Sua história de salvação.
O Deus que é Luz e em quem não há nenhumas trevas, o Deus que fez a luz e chamou dia à luz e noite às trevas, o Deus que é Senhor do dia e da noite, parece ter pela noite uma predileção especial.
No Antigo Testamento são muitos os exemplos do trabalhar de Deus durante a noite. É de noite que Deus desce uma escada misteriosa para se encontrar com Jacob e com ele lutar, é de noite que celebra a primeira Páscoa com o seu povo e o conduz à liberdade, é de noite que chama Samuel, é de noite que desafia Abraão a sair de casa e a olhar as estrelas como sinal de uma promessa que só Ele poderia garantir.
E no Novo Testamento também a vida de Jesus está decisivamente marcada pela noite. A noite guardou o Corpo de Jesus no sepulcro e só a noite, como testemunha silenciosa, viu acontecer a ressurreição. De noite, o Senhor viveu a agonia no horto das Oliveiras e de noite foi traído. De noite celebrou a primeira eucaristia, no meio dos seus amigos, na última Ceia. Na noite se retirou muitas vezes para rezar. De noite nasceu no presépio, Verbo Eterno, e uma estrela anunciou a sua presença.
É verdade! O primeiro Natal é noturno. Em todos os aspetos! Tem um andamento disruptivo e fora do compasso, bastante caótico e fora do plano. Foi um Natal com muitas “restrições” e “inconvenientes”. Não foram “rosas nem flores”, mas dificuldades e preocupações. Foi um Natal vivido na noite do tempo e da incerteza, nos contratempos e nas dificuldades que dominavam a vida de Maria e José e daquele Menino que nascia.
Um nascimento sem lugar na hospedaria e uma fuga apressada para o Egipto.
Maria, que certamente não esperaria uma intervenção de Deus assim, não daquela forma, mas abre a vida a um futuro todo confiado num impossível maior que Ela.
E nesta história impressiona a figura tão noturna de São José. Podemos imaginar a perplexidade e as dúvidas de José que os textos não escondem. No meio da noite da perturbação, no sono e no sonho, descobre, no mais fundo de si, a verdade da sua vida e da sua história e a grandeza da sua missão. Com José, a noite é um chamamento à interioridade, uma convocatória à intimidade, um apelo à relação, uma abertura aos sonhos onde Deus nos fala e nos alarga. A noite de São José não é só uma noite perplexa e perturbada, é a noite aberta ao mistério e ao futuro, onde Deus aparece como único garante e rasga um sentido absolutamente novo numa história que parecia incompreensível, impossível e fechada.
É verdade! O primeiro Natal é noturno. Em todos os aspetos! Tem um andamento disruptivo e fora do compasso, bastante caótico e fora do plano. Foi um Natal com muitas “restrições” e “inconvenientes”.
Como a história de Jesus, Maria e José, a nossa história pessoal tem momentos luminosos e momentos obscuros, luzes e sombras. Um bom e verdadeiro Natal não é o Natal sem contradições ou dificuldades. O verdadeiro Natal é o nascimento de Jesus, é aquele Natal em que Deus entra na história por sua própria iniciativa. E Deus não muda só as circunstâncias, muda a história, porque a refaz por dentro e nos refaz a nós para vivermos no meio da noite como sentinelas que esperam pela aurora, confiados numa promessa e numa presença luminosa que nos transforma e nos habita o coração.
Quando pensamos no Natal, habitualmente pensamos na paz e na concórdia, na família e no aconchego, no quente da casa e das camisolas de lã, no bolo-rei, nas broas e na mesa cheia de coisas boas e gente nossa. O Natal habitual aponta-nos sempre para uma quadra pacífica, luminosa e alegre como o anúncio dos anjos do presépio. Pensamos sempre num Natal familiar, descansado e sem preocupações. É um Natal solar e diurno o que gostamos e desejamos viver.
No entanto, há tanta incerteza, tantas restrições às famílias e aos abraços quentes e apertados, há tanta solidão, tantos lugares em guerra, tanta gente deslocada ou em fuga, longe de quem ama e da sua própria casa. E nas nossas casas quentes e iluminadas podemos até por momentos esquecer a noite e o frio, como fazemos noutros anos em que uma pandemia ou outro acontecimento extraordinário não nos bate à porta.
Mas a noite existe, é real, e reclama luz, presença, promessa e esperança.
E pensar que enquanto festejamos ou descansamos há sempre gente a trabalhar para que nos cheguem tantas coisas que às vezes usamos sem dar valor e que deitamos fora na manhã do dia seguinte em contentores onde o lixo se amontoa. Nas áreas de serviço e nos postos de abastecimento, nas farmácias e nos hospitais, nas viaturas de emergência médica ou no transporte de bens essenciais, nas padarias e nas forças de segurança, nos jornais e nas televisões, toda a noite haverá gente a trabalhar! Gosto de os pensar como diretos colaboradores de Deus, a construir, no meio da noite, com gestos às vezes pequenos e escondidos, uma grandiosa história de salvação. Felizmente, no coração da noite, escrevem-se histórias de amor, porque quando se ama Deus e os irmãos, caminhamos na luz. Todos os gestos de amor são sinais de Deus e da sua presença luminosa que nos aponta caminho e sentido.
Felizmente, no coração da noite, escrevem-se histórias de amor, porque quando se ama Deus e os irmãos, caminhamos na luz. Todos os gestos de amor são sinais de Deus e da sua presença luminosa que nos aponta caminho e sentido.
Precisamos de acreditar que neste ano, na noite deste Natal, “quando o espírito das trevas encobre o mundo, se renova o acontecimento que sempre nos assombra e surpreende: o povo no caminho vê uma grande luz, Jesus veio libertar-nos das trevas e dar-nos a luz” (Papa Francisco). O presente que vivemos pode não ser todo luminoso, mas é uma noite onde Deus nos convida a entrar. E no meio da noite, como crentes, podemos rezar:
“Que a Tua estrela nos encontre disponíveis
para a viagem
mesmo sem que percebamos tudo
Que o seu brilho nos torne pacientes
com as coisas não resolvidas do nosso coração
e nos ajude a amar as difíceis questões
que por vezes a noite, por vezes o dia
segredam pelo tempo fora
Que a Tua estrela nos faça reconhecer
que nunca é tarde
para que se tornem de novo ágeis e sonhadores
os nossos passos cansados
pois nós próprios nos tornamos em estrelas
quando arriscamos perpetuar
a Tua luz multiplicada”
(José Tolentino Mendonça).
Porque o melhor da noite é que se pode ver uma estrela em qualquer parte!
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.