Que «Palavra» é esta, capaz de alimentar toda uma vida de fé? Esta pergunta desperta algo que tem que ver com o caminho de maturação da vida de fé, uma vez que é exemplo de um coração inquieto e sedento, que não abarca tudo, mas onde aquilo que abarca o move a procurar «mais» na experiência narrativa da vida. Faça-se a pergunta: porque é que a experiência narrativa é tão importante na maturidade da fé? Ora, a resposta não é absolutamente simples, mas pode dizer-se que a relação entre narrativa e experiência de fé é muito antiga, na história da espiritualidade na Igreja; ela remonta à experiência do povo de Israel, que procurava ler a sua história à luz da presença do Deus que lhe era sempre fiel e o acompanhava no seu caminho.
De certo modo, a narrativa toca as cordas existenciais, onde cada pessoa procura «dar sentido» a uma experiência de vida; isto porque a narrativa, na sua essência, é assumir um caminho com uma origem, que move cada pessoa a ser duma determinada maneira numa história. Por outro lado, a experiência de fé é a imersão num mistério que, no meio duma confusão e insegurança naturais de quem não abarca tudo, faz sentido para a pessoa, abrindo-a naturalmente ao transcendente. De modo que, o facto da experiência de fé ter algo de «procura de sentido» dita o encontro entre estas duas realidades. De facto, há um elemento identitário na vida da Igreja, que evidencia esse mesmo encontro: a Bíblia. Ora, é certo que haverá sempre mil e uma formas de ler a Bíblia e até de analisá-la literariamente; mas creio que uma das coisas fundamentais, nesta Biblioteca, é o facto de nos mostrar a experiência de um povo que, ao «fazer memória» e reconhecer tudo o que Deus fez por ele, vive duma forma completamente diferente de todos os outros, sendo capaz de, na sua fraqueza, ver a luz nas sombras e, com isso, continuar a seguir em frente. No meio de muitos acontecimentos, a narrativa construída a partir do anúncio dos profetas gritava sempre: «Deus está connosco!» E esta certeza narrativa alimentava muito a fé do povo que viveu, ao longo da história, no exílio.
Por isso, nos Exercícios Espirituais, a Bíblia acompanha o meu caderninho de oração; porque me iluminando a narrativa da minha vida com a escuta da narrativa bíblica, essa Palavra move o discernimento que eu faço.
Assim, penso que se pode pensar como, nos Exercícios Espirituais, Santo Inácio reconhece que a memória, o entendimento e a vontade são alimentados na experiência do encontro com a narrativa bíblica, encontro esse que me vai colocando num caminho de comunhão com Deus e, por aí, procede continuamente a oração dum coração que vê os encontros bíblicos como as «notas de rodapé» da própria vida. Em La maturità dell’esperienza di fede, Giovanni Cucci diz que, na experiência de fé, «a vida vem comparada a um livro, no qual os dias e as ações constituem as páginas, e a Palavra de Deus é como as notas de rodapé que têm a tarefa de explicar o significado» (p.159). Por isso, nos Exercícios Espirituais, a Bíblia acompanha o meu caderninho de oração; porque me iluminando a narrativa da minha vida com a escuta da narrativa bíblica, essa Palavra move o discernimento que eu faço.
É certo que, no contacto com a narrativa bíblica, muitas vezes fica a pergunta: o que tem isto a ver com a minha vida? Ora, poder-se-ia responder: tudo! Porque eu conto a história de Deus comigo; mas preciso dessas «notas de rodapé», para perceber quem é este Deus e como Ele se faz presente na minha história. Realmente, a experiência de um povo que procura Deus, que procura contar a sua história com Deus e que cai na infidelidade do pecado, é a experiência da Igreja e da humanidade de todos os tempos. Todos queremos que a nossa vida tenha identidade e sentido e esse é o poder luminoso da narrativa, em função da qual eu sou capaz de me orientar num caminho concreto. E, por isso, a experiência de fé se alia tanto à formulação de uma narrativa existencial, que pode ser promotora do crescimento da pessoa e da comunidade humana, como pode também ser perversa e destruidora para elas quando é instrumentalizada para um fim determinado.
Portanto, poder-se-ia dizer que a Palavra é semente doada por Deus à minha vida, para lhe dar sentido, e esse sentido alimenta a minha vida, fazendo-me entrar no mistério da experiência de fé. Acolher a Palavra possibilita a construção de uma narrativa da própria vida com Deus e acolher é um gesto humilde, porque quem acolhe não escolhe aquilo que acolhe; toda a Bíblia me quer dar a conhecer Deus na minha vida e, neste sentido, compete-me estar disponível para a acolher. Por isso, quando eu aprender a acolher desinteressadamente essa Palavra, que me faz ler a própria vida, eu estou a abrir caminho de maturação da experiência de fé; porque essa experiência é alimentada por uma Palavra que faz aumentar efetivamente, em mim, a fé a esperança e a caridade.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.