O que faz de um político um líder?
Um líder não se auto-intitula. Um líder é reconhecido.
Angela Merkel. A chanceler alemã dispensa apresentações. Entre nós, tornou-se símbolo da austeridade – a mulher de pulso severo, de programas e reformas fiscais impiedosas. Criticada pelo ar grave e sério, pelo corte de cabelo, pelo modo de vestir, pela voz… As suas palavras a propósito dos portugueses se reformarem cedo demais, sugerindo que passamos demasiado tempo nas praias, ainda nos inícios da crise da divida pública na Europa, não serão facilmente esquecidas.
Todavia, reduzir a sua carreira política a este momento é pouco e revela uma visão enviesada, talvez partidária, da realidade. Angela Merkel começou a ganhar visibilidade dentro do partido nos anos 90 e em 1994 foi apontada pelo chanceler Helmut Kohl para ministra do ambiente. A sua competência e dedicação foram rapidamente reconhecidas. Em 2000, ganha as eleições para a presidência do partido União Democrata-Cristã (CDU). Cinco anos depois é escolhida pelos alemães para governar a nação. Merkel está prestes a terminar o seu quarto e último mandato.
Que avaliação podemos fazer?
Em tempos em que os modelos e testemunhos de liderança política parecem escassear, sendo ofuscados por populismos e aparatos políticos de tantos outros representantes, revela-se ainda mais a importância de separar o trigo do joio. E deixar claro que não apenas os alemães – mas também os europeus, e por consequência, os portugueses – nos devemos sentir satisfeitos com o trabalho da chanceler alemã. A solidez actual da “união” dos países Europeus deve-se em muito ao trabalho e convicções de Angela Merkel.
Gostaria de destacar três características que aprecio particularmente na liderança de Merkel.
1. Moderação, Simplicidade e Humildade.
Humildade política parece um contra-senso se atendermos aos episódios da vida política actual. Pode até soar a fraqueza. Todavia, a humildade anda lado a lado com a verdade. E Angela Merkel é reconhecida por todos (diria) por ser uma política em quem se pode confiar, o que hoje não se pode ter por adquirido! Não é mulher de palavras vãs ou vazias. Honestidade, clareza e ponderação são características que a precedem.
Quando questionada acerca do significado que a palavra “cristão” imprime ao partido (CDU), Merkel respondeu: “Vivemos num mundo onde podemos ir a qualquer lugar através da Internet. Dar às pessoas uma noção das suas raízes e valores é algo que, sob um ponto de vista cristão, pode ser bastante benéfico. O “C” também significa ver que todos os humanos têm falhas, incluindo os políticos. Eu vivi numa ditadura onde um grupo de pessoas pensava que estava historicamente determinado a governar os outros. Uma visão cristã exclui essa possibilidade.”[1]
Não é uma mulher de palco, apesar de desempenhar um dos papéis mais determinantes ao nível da esfera política internacional. Não parece gostar de ser o centro das atenções. Convém sublinhar que ela é a primeira mulher a liderar os destinos da Alemanha, facto que pode ser facilmente esquecido dado que nunca a ouvimos reclamar esse título ou vitória, apesar de nos seus mandatos ter dedicado especial atenção à desigualdade de oportunidades entre homens e mulheres ainda existente na Alemanha.
Simultaneamente, e apesar de o ser, nunca se apresentou como a “Presidente” de uma das nações mais importantes e influentes. As suas palavras coincidem com a sua actuação: “Acho que a Alemanha está destinada, em parte como resultado da sua posição geográfica, a ser um mediador e um factor de equilíbrio.”[2]
Eu vivi numa ditadura onde um grupo de pessoas pensava que estava historicamente determinado a governar os outros. Uma visão cristã exclui essa possibilidade.
2. Coragem
Para a filósofa Hannah Arendt, coragem é a virtude política por excelência, e que tem a ver com capacidade para agir e falar, revelar-se e expor-se na sua verdade, sem estar dependente do barómetro da aceitação e rejeição, ou do número de seguidores.[3] Para Arendt, sem esta coragem original não há verdadeira liberdade.
Logo após ter sido eleita presidente do CDU em 2000, numa entrevista à revista Newsweek, Merkel revelou essa coragem, virtude que virá a desenvolver-se progressivamente à medida que vai conquistando o espaço e confiança políticas, num mundo marcadamente masculino. “O slogan que usámos nas eleições de 1998 foi ‘Segurança em vez de Risco’. Na minha opinião, devemos mudar isso para ‘Risco em vez de Segurança’.[4] O mundo está a mudar rapidamente e temos que ter a coragem de ver a mudança como algo positivo, em vez de ficarmos assustados com a mudança (…) Em 1989, na Alemanha do Leste, fomos confrontados com a necessidade de uma mudança total e radical. Em vez de nos deixarmos paralisar pelos riscos, decidimos tirar partido dessa oportunidade e isso trouxe-nos muito bem.”[5]
3. Mulher de Convicções e Princípios democráticos
Merkel é prontamente reconhecida pelo seu pragmatismo. Todavia, importa acrescentar que este pragmatismo é marcado por convicções sólidas, que são avaliadas mais pelo valor inerente do que pelos seus resultados. A “vocação europeia” de Merkel foi-se tornando mais evidente nos últimos anos.
Na entrevista ao Jornal The Guardian, quando questionada acerca do futuro e viabilidade da Europa, Merkel foi eloquente: “Em vez de se fazer a pergunta existencial com tanta frequência, devemos continuar com o trabalho diário. É do interesse de todos os Estados-Membros manter um mercado interno europeu forte e permanecer unidos na esfera mundial. Neste contexto tão extraordinário, confio que os Estados-membros terão maior interesse nas coisas que nos unem.”
Dois exemplos Concretos
A. Refugiados na Europa
Pondo em risco a sua recandidatura e popularidade, Merkel mostrou em gestos e medidas concretas o que significa ser solidário no espaço público e político. Deu testemunho. Para ela estavam em causa valores e princípios fundamentais que se sobrepunham aos “ses” da prudência política. “Se revelarmos coragem e mostrarmos o caminho, uma abordagem europeia comum torna-se mais provável (…) Se a Europa falhar na questão dos refugiados, trairá os seus princípios fundadores.”
É neste contexto, e apesar do crescente sentimento anti-imigrante gerado, que Merkel anunciou que a Alemanha acolheria cerca de um milhão de refugiados e iria proporcionar condições para a sua integração no mercado de trabalho. Simultaneamente, decidiu suspender a Convenção de Dublin, que estipula que os refugiados devem procurar asilo apenas no país em que entram. Esta suspensão permitiu que muitos refugiados procurassem asilo directamente na Alemanha, o destino desejado por grande parte dos refugiados.
Em resposta às críticas que foi recebendo dentro e fora do partido pelas decisões que tomou, Merkel respondeu num dos comícios do partido que o problema não tinha a ver com o Islão: “Nós não temos demasiado Islão, temos muito pouco Cristianismo. Temos muito poucas discussões sobre a visão cristã da humanidade.”
B. A Pandemia na Europa
Diante do que por muitos é apelidado como um dos maiores desafios na história da economia Europeia, Merkel, contrariando a pressão interna dentro do partido e país, decidiu abandonar o grupo dos “Estados frugais” e, juntamente com o presidente francês, Emmanuel Macron, foi capaz de “unir” os membros da UE num esforço colectivo e histórico, aprovando um pacote ajuda financeira aos países devastados pela crise económica actual de cerca de 1,8 biliões de euros, a famosa “bazuca” de combate à crise. A “senhora da austeridade” parece agora não ter mãos nos bolsos! E no entanto, para Merkel esta era a coisa certa e justa a fazer-se. “É justo que a Alemanha não pense apenas sobre si mesma, mas esteja preparada para se envolver num extraordinário acto de solidariedade.”
Quando questionada pelo The Guardian acerca desta suposta concessão aos países do sul, Merkel respondeu: “Eu não acho que ajude falarmos em países do norte, países do sul e europeus do Leste. Isso é ver as coisas a preto e branco. Espero que cada um de nós seja sempre capaz de se colocar no lugar do outro e considerar os problemas sob o ponto de vista do outro.”
Afinal, o populismo ou a mediocridade política parecem não ser o único destino possível para a política europeia e mundial.
Liderança reconhecida
Acho admirável que quase decorridos quatros mandatos, e prestes a encerrar o seu percurso enquanto chanceler alemã, Merkel deixe para trás uma nação maioritariamente unida. Num inquérito conduzido recentemente, 82% dos alemães mostram-se satisfeitos com a liderança do país. Depois, dos longos e exaustos dias de disputa pela presidência americana, este resultado parece um milagre! Agora, à frente do Conselho da Europa, Merkel, dá ainda mais forma à sua visão de um continente unido e fortalecido nos seus princípios democráticos e fundadores. Uma união que não significa uniformidade.
Segundo a convicção de Merkel, “Como sempre, o que é bom para a Europa, é bom para nós.” Este poderia ser o slogan da sua liderança. Uma leitura apressada precipitar-se-ia a especular um possível interesse próprio/nacional. Todavia, olhando para a história e percurso de Merkel, proponho uma outra leitura.
Angela Merkel viveu num país dividido e sob uma ditadura. Tendo nascido no território comunista alemão (RDA), tem um apreço fundamental pela liberdade e democracia. Sabe e tem memória do custo da divisão e do quão perigoso e destrutivo pode ser uma Europa dividida, em que os Estados-membros se focam apenas no próprio interesse (memória que pelos vistos não é partilhada pela Polónia e Hungria). O que é bom para uma comunidade, é bom para nós, não é apenas uma expressão de estilo. Revela o carácter de uma líder que acredita que o todo é mais que a soma das partes. Revela a convicção de uma líder que acredita profundamente num futuro melhor. E que o caminho para esse futuro, começa por considerar primeiramente o bem-comum.
Afinal, o populismo ou a mediocridade política parecem não ser o único destino possível para a política europeia e mundial.
Fotografia© Raimond Spekking / CC BY-SA 4.0 (via Wikimedia Commons), CC BY-SA 4.0,
[1] Clifford W. Mills, Angela Merkel (Modern World Leaders)
[2] Clifford W. Mills, Angela Merkel (Modern World Leaders)
[3] Hannah Arendt, A Condição Humana
[4] Clifford W. Mills, Angela Merkel (Modern World Leaders)
[5] Clifford W. Mills, Angela Merkel (Modern World Leaders)
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.