Abra-se o Novo Testamento na Carta de Tiago (5,1-6), texto de teor moral com claras marcas judaicas:
E agora vós, ó ricos, chorai em altos gritos por causa das desgraças que virão sobre vós. As vossas riquezas estão podres e as vossas vestes comidas pela traça. O vosso ouro e a vossa prata enferrujaram-se e a sua ferrugem servirá de testemunho contra vós e devorará a vossa carne como o fogo. Entesourastes, afinal, para os vossos últimos dias! Olhai que o salário que não pagastes aos trabalhadores que ceifaram os vossos campos está a clamar; e os clamores dos ceifeiros chegaram aos ouvidos do Senhor do universo! Tendes vivido na terra, entregues ao luxo e aos prazeres, cevando assim os vossos apetites… para o dia da matança! Condenastes e destes a morte ao inocente, e Deus não vai opor-se?
Eis uma advertência vigorosa aos abastados cuja riqueza advém da exploração dos trabalhadores. A acumulação de riquezas é reduzida a nada aos olhos de Deus, um amontoado de coisas em decomposição e sem futuro. A ferrugem do ouro e da prata, intensificada pela falta de uso, é o sinal da inexorável e corrosiva passagem do tempo. O imenso tesouro terreno é a prova de um pecado apontado noutras passagens da Bíblia, particularmente no Antigo Testamento (Dt 24,14-15). Aí encontramos a denúncia de que a observância religiosa por parte de quem oprime os trabalhadores é uma falsa adoração a Deus. Por isso se lê no livro profético de Isaías: “no dia do vosso jejum só cuidais dos vossos negócios e oprimis todos os vossos empregados” (58,3b).
O salário não pago equivale a um clamor. Aqueles que se tornam ricos abusando de quem trabalha nas suas propriedades, negando-lhes a remuneração, ignoram os gritos de protesto que se elevam a Deus. Do que se trata, no fundo, é de reconhecer que “o salário justo é o fruto legítimo do trabalho”, como se pode ler no Catecismo da Igreja Católica (2434), onde a passagem que citei é utilizada como fundamento bíblico. Ao reter e acumular a riqueza criada pelos trabalhadores, os ricos ficam com aquilo que não lhes pertence. O aviso não pretende anular diferenças de rendimento geradas por indesmentíveis diferenças entre tipos e horários de trabalho e entre funções e categorias de trabalhadores. Tal também não quer dizer que estas diferenças se traduzam na desigualdade social, na disparidade de acesso a bens essenciais, ou na pobreza material que nega a dignidade à vida.
Na celebração eucarística a que presidiu no dia 24 de maio de 2018 na capela da Domus Sanctae Marthae, o Papa Francisco disse que talvez hoje se pense em Tiago como “um representante sindical”. Certamente, mais especificamente: como um sindicalista católico guiado pelo mesmo Espírito que alimentou a escrita desta carta. Um sindicato, organização que visa defender os direitos laborais dos seus associados e dignificar as suas condições de trabalho, deve defender o direito básico dos trabalhadores ao fruto do seu trabalho. A questão coloca-se, assim, no campo da justiça. A idolatria do dinheiro torna-se ferrugem, imagem invertida da eternidade, dando forma a um gesto de rejeição, ou uma manifestação de desconhecimento, de Deus. Conhecer a Deus, amar a Deus, é fazer justiça ao pobre e oprimido, como lembra o frade dominicano Gustavo Gutiérrez.
Na encíclica Laudato Si’ sobre o cuidado da casa comum, Francisco escreveu que “ajudar os pobres com o dinheiro deve ser sempre um remédio provisório para enfrentar emergências. O verdadeiro objectivo deveria ser sempre consentir-lhes uma vida digna através do trabalho” (128). Como é evidente, se essa vida digna através do trabalho for realizada, os pobres deixam de ser materialmente pobres. Não há, no entanto, cristão que possa escapar à proposta de pobreza evangélica que significa apenas viver generosamente na relação com Deus e com o próximo. Este generosidade revela-se no desprendimento em relação aos bens, na constatação do seu verdadeiro valor, no contexto do laço de fraternidade humana regenerado em e por Jesus Cristo. É precisamente esta pobreza que falta aos ricos que Tiago adverte porque aquilo de que tomam posse não foi usado para o bem do próximo ou a glória de Deus. Escravizando, sucumbiram à escravidão.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.