A difícil relação entre a dor e a fé impõe-se a todos, quando confrontados com algum tipo de mal inesperado. A ausência de uma resposta clara ao “porquê” que subjaz a esses momentos marca profundamente a vida humana, moldando, de modo particular, esse desafio que é a integração do sofrimento na experiência da fé. E se é certo que esse difícil caminho é, muitas vezes, percorrido ao lado de outros, que nos suportam e motivam, outras vezes, é necessariamente um caminho de solidão, como o de Jesus a caminho do Calvário.
A resposta que caracteriza a procura de sentido na dor nunca é simples e taxativa. Desde logo porque o seu conteúdo é mais uma procura dinâmica e constante de que uma solução imediata e óbvia. Mas isso não inibiu o espírito humano ao longo da história e vários filósofos arriscaram peregrinar através desta área obscura da relação dor-fé. Dentre eles gostaria sublinhar sinteticamente duas perspetivas em concreto: Leonardo Coimbra e Friedrich Nietzsche, que embora não se debrucem explicitamente sobre a questão da dor na experiência de fé, ajudam a aprofundar um tema, que, pelo seu carácter existencial, tocará necessariamente os umbrais da espiritualidade.
Leonardo Coimbra, um dos grandes filósofos portugueses, afirma que só o ser humano tem consciência do próprio sofrimento e que, por causa disso, só ele é capaz de integrar a experiência da dor no seu próprio caminho de vida. E apesar de reconhecer a grande tragicidade da vida: «dá estalos», não é justa, abalando inocentes ao roubar-lhes tudo o que os pode deixar minimamente satisfeitos, não se detém nesta constatação depressiva. Na sua obra A Alegria, a Dor e a Graça, dá a entender que o exemplo da vivência com sentido de cada uma destas experiências existenciais se encontra fundado na própria vida de Jesus Cristo, no modo como Ele as experimentou e as tornou profundamente fecundas. Para o filósofo português, a grandeza de Cristo diante da dor revelou-se na aceitação de fazer caminho através dela, tornando os passos em frente, durante o Calvário, ineditamente fecundos e abrindo um caminho de esperança rumo à plenitude da ressurreição.
Para o filósofo português, a grandeza de Cristo diante da dor revelou-se na aceitação de fazer caminho através dela, tornando os passos em frente, durante o Calvário, ineditamente fecundos e abrindo um caminho de esperança rumo à plenitude da ressurreição.
Assim, a experiência dolorosa de Jesus, segundo Leonardo Coimbra, não mostra simplesmente o ponto de rutura e exaustão de um inocente. Ao sublinhar o modo como Ele penetrou a espessura da dor, o filósofo mostra como ela pode ser vivida com um sentido profundo, invertendo a decadência e fortalecendo, paradoxalmente, a própria vida. É muito interessante notar como Leonardo Coimbra toma como referência existencial, não o sucesso da vida pública de Jesus e as aclamações entre as multidões que O acompanhavam, mas o seu caminho até ao Calvário; o facto de aceitar viver plenamente aquela que viria tornar-se ícone da experiência de abandono.
O incontornável Friedrich Nietzsche, por seu lado, apercebeu-se igualmente que a dor e a alegria não são experiências desligadas entre si. O filósofo prussiano propõe o conceito de Amor Fati como capacidade de «amar o próprio destino», sendo este, não uma realidade pré-determinada, mas algo a determinar a partir do próprio sujeito. E, nesta realidade que é «sempre a determinar», o único erro será arriscando, não saber erguer-se depois de cair.
Ora, refletir sobre o lugar da dor na experiência de fé não se trata, se quisermos extrapolar a partir destes autores, de refletir sobre a questão do bem e do mal em si mesma; mas sobre o sentido de crescimento a que a experiência de fé pode levar fruto de uma vivência justa da experiência da dor. E se é verdade que a questão do sentido do sofrimento permanece em aberto, algo se pode colher, parece-me, da perspetiva destes dois filósofos. Por um lado, com Leonardo Coimbra, o aceitar iniciar e permanecer num caminho de busca é expressão do ser humano maduro, do homo viator irredutível na busca de um sentido, que aceita a vida como é e quer tornar aquilo que sofreu e sofre em amor fecundo, ao serviço da realidade universal. Já para Nietzsche, a experiência de fé que serve como um simples analgésico é criticável, por medo de não se querer encontrar sentido naquilo que é a própria condição da vida, com as suas agruras, escolhendo baixar os braços e não lutar quando as forças da vida nos superam de todos os lados.
Finalmente, e apesar de tudo o que se possa dizer, cada um é o único a poder crescer a partir das suas próprias experiências de limite. E esta experiência da dor é uma das experiências existenciais mais profundas que nos é dado viver. Viver é experimentar a dor e tentar encontrar sentido nessa mesma experiência, um sentido ativo, não alienante, que busca animar o ser humano na sua experiência de crescimento espiritual.
Fotografia de Kristina Tripkovic – Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.