Paray-le-Monial, ‘Terra do Coração de Jesus’, é um convite à interioridade e à contemplação. Entrar lá é como entrar numa ‘cidade santuário’, ainda preservada do aspeto demasiado comercial que encontramos noutros altares do mundo. Ali viveu, no século XVII, Santa Margarida Maria Alacoque, vidente e grande impulsionadora da devoção ao Sagrado Coração de Jesus.
Muitos viram e veem, na visão mística e profética de Santa Margarida Maria, quase à entrada para o ‘Século das Luzes’, o vincar de uma dimensão mais interior e mais sensível, em contraste e contraponto com a apoteose da razão do racionalismo iluminista.
No entanto, longe de ser um aspeto menor, sentimentalista e periférico do cristianismo, o tema do Coração de Jesus é «o coração da revelação [cristã], o coração da nossa fé» (Papa Francisco). Lembra-nos, em primeiro lugar, que Deus nos ama, que o coração de Deus tem lugar para todos, que é um coração de carne, aberto, transbordante de amor e de misericórdia.
Na tradição católica, junho, que agora começamos, é o ‘verdadeiro’ mês do coração. No dia 28, segunda sexta-feira após a solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo vamos celebrar a Solenidade do Sagrado Coração de Jesus e rezar de modo especial pela santificação dos sacerdotes. Habitualmente celebraríamos no sábado logo depois a Memória do Imaculado Coração de Maria, mas neste ano sobrepõe-se a esta Memória a Solenidade dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo, dois corações grandes e apaixonados por Jesus.
Durante este mês, seria bom recuperar e atualizar para hoje a força intrínseca, original e originária, da palavra coração. ‘Coração’ é, segundo K. Rahner, uma ‘protopalavra’ (UrWorte). É uma daquelas palavras cuja definição será sempre indefinida, faz parte das palavras que já são antes de serem, porque o que dizem é sempre maior do que aquilo que conseguimos captar e explicar delas. Antes das explicações parciais e das tentativas de definição, apontam para uma totalidade e uma unidade que lhes são intrínsecas.
Assim é o coração. É o centro vital do homem, o seu lugar mais íntimo e mais profundo, o lugar da unidade de todas as dimensões. Significa a unidade e a totalidade originais, corpo e alma, ação e vontade, exterioridade e intimidade. Coração não é só músculo, nem é só espiritual. É o mais íntimo centro do homem total, a pessoa no seu todo e na sua unidade. Sentimentos, impulsos, desejos, memória, vontade, inteligência, atos. Nada fica de fora do coração!
Recuperar o coração significa, em primeiro lugar, restabelecer a totalidade que a contemporaneidade parece esquecer. É fácil ficarmos presos em visões parciais e fragmentadas do homem e da realidade, no nosso pequeno mundo, sem a noção do todo. Somos, na melhor das hipóteses, especialistas de pequenos pormenores, mas sem uma visão holística, de conjunto. Mais grave ainda quando o predomínio da técnica adormece, mesmo em âmbito universitário, o interesse pelas ciências sociais e humanas, pelas artes e pelas letras, lugares de tentativa de conjunto e de visão profunda da realidade. A parcialidade traz consigo o perigo das meias verdades, das inverdades, e das pós-verdades tão na moda, onde a procura da objetividade cede primado à emotividade e à visão parcial de cada um. Tremendo paradoxo! O coração, tantas vezes acusado de sentimentalista, ainda tem o poder de nos salvar de emotivismos primários, parciais e, possivelmente, mentirosos.
A graça da unidade é, pessoal e comunitariamente, um dom e uma tarefa, uma meta e, simultaneamente, um caminho.
Mas recuperar o coração significa também não esquecer a importância da unidade. Hoje, a fragmentação e a dispersão atuais parecem ser altamente centrífugas, afastando-nos do centro e provocando desintegração e falta de unidade. Quem não se sentiu já com o coração partido, quebrado, com o coração esticado e em tensão, com o coração dividido? A graça da unidade é, pessoal e comunitariamente, um dom e uma tarefa, uma meta e, simultaneamente, um caminho. E a procura constante da unidade de vida é trabalho para toda a vida. Trata-se certamente de unidade interior, de união de todas as dimensões da vida a partir de um sentido unificador, mas trata-se também de união com os outros que somos chamados a amar. Unidade pessoal, nacional, eclesial: tanto caminho para fazer e tantos passos para dar.
Recuperar o coração pode ser ainda recuperar a dimensão da interioridade e dos afetos; pode ser recuperar humanidade verdadeira e experiência de pertença; pode ser recuperar a ternura, o consolo, o cuidado, a compaixão e a misericórdia; pode ser recuperar o sentido de viver com e para; pode ser recuperar o lugar da reparação e da expiação na vida espiritual, vencendo a indiferença e oferecendo por outros o que vivemos e sofremos; pode ser recuperar a paixão, no sentido mais profundo e mais cristão que esta palavra possa ter; pode ser recuperar a certeza de que cada ser humano é amado por Deus de forma única e total; pode ser recuperar o desejo de que todos tenham um ‘coração de carne’; pode ser recuperar o sentido da adoração, da contemplação…
Pode ser isto e muitos mais, porque não se esgotam nas palavras e nos desafios a força da realidade que a palavra coração significa e transporta. Aproveitemos este mês para parar e contemplar o mistério do Coração de Jesus, origem da nossa salvação, e para beber dessa fonte que nos recupera o coração. Porque é urgente recuperar o Coração!
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.