Com o olhar percorria o espaço, contemplava o espaço que tinha tornado seu. Gostava de criar espaços, de lhes dar cara e forma e personalidade, de fazer sobressair a luz. Este tinha-o feito com especial gosto, o gosto do que se quer muito. Sentia-o como a sua primeira casa, vivera-o como a sua primeira vida. Na sequência de uma decisão maior deixaria brevemente de ser seu, deixaria de existir aquele espaço. Tinha de começar a retirar das paredes as marcas, a encaixotar as lembranças; tinha decidido mudar, sair, deixar. O difícil era o arrumar do coração.
Bebemos de uma sociedade que educa para o sucesso. Um sucesso que se traduz em possuir e ostentar roupas, carros e casas como medalha de êxito; um sucesso que se manifesta na mestria em tudo o que fazemos, sendo exigido cada vez mais e melhor; que se alimenta do orgulho, em exibir com vaidade as nossas conquistas. E, secretamente ou não, este esquema contamina as nossas decisões e o que somos. Andamos de peito feito a olhar de cima para baixo com ares de superioridade e de baixo para cima com desejos de cobiça. Criados para viver em função do nosso bem-estar, que cada vez cresce mais com fome e sede de tantas coisas.
Até que um dia tudo muda ou alguma coisa muda. Uma relação que se transforma, um emprego que termina, uma pessoa que parte, um plano que é alterado, uma mudança, uma segurança que desaparece. E a fragilidade que trás uma angústia enorme: o perceber que essas coisas, às quais nos prendemos e dependemos, podem mudar, terminar, morrer.
E aí nasce uma oportunidade, uma oportunidade de percebermos que se o nosso mundo desaba por este ou aquele motivo, talvez estivesse edificado em areia. Se a nossa alegria é abalada, provavelmente a causa estava o centro da nossa alegria.
O que compromete a minha alegria? O que me rouba a Paz interior?
E aí nasce uma oportunidade, uma oportunidade de percebermos que se o nosso mundo desaba por este ou aquele motivo, talvez estivesse edificado em areia. Se a nossa alegria é abalada, provavelmente a causa estava o centro da nossa alegria. Se vamos mais fundo, podemos dar por nós presos em esquemas, ditados por rotinas, emaranhados de relações de dependência.
O que não me pode faltar?
A linguagem de Santo Inácio é muito assertiva na pergunta que nos coloca: que relação tens com as coisas (pessoas, desejos, planos)? E é muito diretiva na proposta que leva à verdadeira felicidade: o que te leva a Deus agarra, o que te afasta de Deus deixa. Assim, sem mais. Quanta simplicidade, quanta exigência. Santo Inácio considera que, de entre os nossos afetos, são ordenados os que nos aproximam de Deus e desordenados todos os que afastam d´Ele.
Neste sentido, para os que queremos fazer caminho para Deus, é essencial sermos diligentes na consideração do estado dos nossos afetos (a nossa relação com tudo da nossa vida). A proposta é de continuamente retirarmos obstáculos, constantemente fazermos o exercício de abrir as mãos que teimam em agarrar. Abrir as mãos, as mãos que prendem com medo de largar, as mãos que agarram como quem quer possuir, abrir as mãos cheias de nada com medo do vazio. É urgente abrir as mãos, para que o coração se encha de Deus, porque “Deus deixa-me existir fora dele. Compete-me recusar tal autorização.” (Simone Weil)
Artigo originalmente publicado no site essejota.net da Pastoral Juvenil da Companhia de Jesus. Esse site já não está disponível.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.