Criar sonhos

É urgente que os católicos se empenhem em criar sonhos de uma sociedade ideal baseados no Evangelho e na reflexão acumulada pela Igreja ao longo de dois mil anos. Indo mais além da dicotomia esquerda versus direita.

Quando pensamos em política ocorre de imediato a dicotomia esquerda/direita. Tendemos a pensar numa linha em que colocamos partidos ou pessoas mais à esquerda ou mais à direita. Mas pensamos menos no que pode justificar tal arrumação. E, por vezes, diz-se mesmo que a divisão esquerda/direita é algo do passado.

Ao mesmo tempo, em artigos de opinião vamos sendo sucessivamente confrontados, direta ou indiretamente, com ideias sobre uma sociedade melhor. Critica-se o papel do estado ou o papel dos bancos privados, os impostos ou a desigualdade. E vamos percebendo que para uns a sociedade ideal será aquela em que a liberdade individual e a proteção da propriedade privada são os valores fundamentais e absolutos, enquanto que para outros, no polo oposto, a abolição da propriedade privada e a submissão do individual ao coletivo são os princípios ideais.

Reencontramos assim a divisão esquerda/direita nesta polarização entre ideais mais coletivistas de inspiração marxista e ideais mais individualistas designados como liberais.

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Fotode: Robson90 / Shutterstock.com / A ligação da Doutrina Social da Igreja à política não é óbvia. Monumento a João Paulo II e Regan na Polónia ((Gdansk)

Quando observamos a evolução política em diversos países, vemos que certas aproximações mais radicais a estes ideais têm tido resultados no mínimo duvidosos. Muitas experiências de inspiração marxista acabam em regimes em que a destruição da economia acompanha a falta de liberdade, enquanto experiências mais liberais, em países como os Estados Unidos de Reagan ou o Reino Unido de Thatcher, não só mantêm uma parte muito significativa dos seus cidadãos na miséria como criaram um ambiente que evoluiu atualmente para derivas na democracia, de consequências pouco claras.

É certo que, em qualquer dos casos, os mais rigorosos dirão que as experiências não respeitaram os ideais originais, mas ficam sérias dúvidas sobre a possibilidade desses ideais serem atingidos.

Será realmente importante na vida política do século XXI ter um ideal de sociedade? Qual a influência dos ideais?

Carlos Albuquerque

Será realmente importante na vida política do século XXI ter um ideal de sociedade? Qual a influência dos ideais?

Um economista famoso, John Maynard Keynes, escreveu, de forma exemplar, em 1936: “As ideias de economistas e filósofos políticos, tanto quando estão certas como quando estão erradas, são mais poderosas do que se costuma pensar. De fato, o mundo é governado por pouco mais. Homens práticos, que se julgam bastante isentos de qualquer influência intelectual, são habitualmente escravos de algum economista defunto. (…) cedo ou tarde, são as ideias, não os interesses instalados, que são perigosas para o bem ou para o mal.”

Um outro economista, Friedrich Hayek, num artigo de 1949, com o título “The Intellectuals and Socialism”, fez uma análise muito interessante do papel que as ideias e a sua disseminação têm como influenciadoras da política. Hayek era um liberal que tentava analisar como as ideias socialistas se tinham difundido, ao ponto de dominarem a política em muitas democracias. Um dos aspetos interessantes é que a análise de Hayek parece ter servido de plano estratégico para difusão das ideias liberais, que ainda hoje está em prática.

Dada a relevância das ideias na definição, a prazo, das políticas e a sua oscilação entre os dois polos marxismo/liberalismo, é o momento de questionar qual pode ser o posicionamento de um católico perante esta situação.

Dada a relevância das ideias na definição, a prazo, das políticas e a sua oscilação entre os dois polos marxismo/liberalismo, é o momento de questionar qual pode ser o posicionamento de um católico perante esta situação.

Carlos Albuquerque

Citando o Papa São João Paulo II (Laborem Exercens, 3)

“A doutrina social da Igreja, efetivamente, tem a sua fonte na Sagrada Escritura, a começar do Livro do Génesis e, em particular no Evangelho e nos escritos dos tempos apostólicos. Dedicar atenção aos problemas sociais faz parte desde os inícios do ensino da Igreja e da sua conceção do homem e da vida social e, especialmente, da moral social que foi sendo elaborada segundo as necessidades das diversas épocas. Um tal património tradicional foi depois herdado e desenvolvido pelo ensino dos Sumos Pontífices sobre a moderna «questão social», a partir da Encíclica Rerum Novarum.”

Quando lemos textos da Doutrina Social da Igreja, percebemos que algumas das ideias fundamentais dos dois polos que identificámos são recusadas pela Igreja. Como exemplo tomamos a questão da propriedade privada: a Igreja defende a necessidade da existência de propriedade privada, recusando as visões que propõem a sua extinção, mas não lhe atribui um caráter absoluto, subordinando-a ao destino universal dos bens.

Na verdade, muitos dos problemas das nossas sociedades são semelhantes a problemas que já existiram no século XIX e na primeira metade do século XX. A atualidade das encíclicas papais relativas às questões sociais é notável, mas é igualmente notável a forma como muitos católicos envolvidos na política parecem não incorporar a Doutrina Social da Igreja nas suas ideias e propostas.

A atualidade das encíclicas papais relativas às questões sociais é notável, mas é igualmente notável a forma como muitos católicos envolvidos na política parecem não incorporar a Doutrina Social da Igreja nas suas ideias e propostas.

Carlos Albuquerque

É certo que os dois polos marxismo/liberalismo são os mais difundidos pelos vários meios de comunicação social, mas o facto desses polos ideais não terem uma visão cristã da pessoa humana faz com que abram caminho a injustiças muito graves, instabilidade social, guerras e destruição da natureza. Note-se, no entanto, que, quer no marxismo quer no liberalismo, existem aspetos importantes de verdade que importa preservar.

É urgente que os católicos se empenhem em criar sonhos de uma sociedade ideal, baseados no Evangelho e na reflexão acumulada pela Igreja ao longo de dois mil anos. Cada um, na medida da sua situação, pode dedicar algum tempo e energia a compreender melhor o mundo e o pensamento político, confrontando sistematicamente as propostas políticas com os valores da Doutrina Social da Igreja.

Este desafio é dirigido de um modo especial àqueles que pela sua formação ou posição têm mais possibilidades de desenvolver uma reflexão mais sistemática e àqueles que desempenham cargos políticos. A nível institucional a Universidade Católica poderia ser líder numa visão do mundo, da política, da economia e da sociedade que fosse capaz de unificar o mais genuíno da ciência com os valores do Evangelho.

Compete-nos a todos desenvolver e tornar visíveis propostas verdadeiramente evangélicas, que possam marcar os sonhos e construções do futuro com Justiça e Paz.

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.