Numa entrevista ao Expresso há cerca de um ano, o ator Luís Miguel Cintra descrevia como, após o 25 de Abril, os seus colegas e ele próprio compreendiam o teatro que praticavam. “Havia a ideia de que alguns tinham a sorte de ter estudos superiores e formação cultural. Essas pessoas tinham uma responsabilidade pública, que assumia algum didatismo. Na altura, dizia-se ‘formar’. Queríamos formar um público, formar espectadores. Ao ler o que escrevi ao longo dos anos, vejo uma reflexão permanente sobre o próprio ofício, como se estivesse sempre a passar uma espécie de exame de consciência. Não sei se herdei isso da minha formação católica: a ideia de fazer o bem, de generosidade, de viver para os outros.”
Esta passagem tem permanecido comigo. Como sempre que ouço falar quem participou naquele capítulo da nossa história coletiva, acorda em mim o fascínio daquele tempo inaugural, repleto de cisões e decisões, que nos conduziu à democracia participativa. Um tempo de entusiasmo e que nos contagia, só de o ouvir relatado. A segunda reação, automaticamente provocada, foi de algum espanto pelo despudor com que Luís Miguel Cintra fala de uma responsabilidade que – creio podermos assim denominar – é definida por classe de instrução: aqueles que tinham a sorte de ter educação superior, sentiam a responsabilidade de formar os outros, que lhes eram inferiores na instrução.
Parece-me reveladora a utilização das palavras “sorte” e “formar”. Porque nenhuma destas palavras tem hoje grande reputação: a sorte foi destronada pelo mérito, e a formação de quem-pouco-tem foi substituída pelo respeitoso distanciamento face à autonomia individual do sujeito.
Mas não foi isso que me cativou a sensibilidade, nem tão pouco a fugaz ideia de os acusar de paternalismo-classista. Aquilo que me moveu foi o facto do relato de Cintra do pós-’74 descrever aquilo de que sinto falta, de forma instintiva, e que considero absolutamente valioso, em 2022 como há cinquenta anos.
Aproveitam a suposta liberdade que lhes é conferida pelo conforto financeiro, não para descobrirem a ocupação e caminho de vida que mais os realiza, mas antes para se submeter a uma doutrina inquestionável e rígida, que lhes é imposta e alimentam.
Hoje, e já há algum tempo, segundo consta, a classe média alta comporta-se como se fosse pobre. A diferença é que, enquanto os pobres estão limitados pelas circunstâncias materiais, os ricos limitam-se por ideias imateriais e por opção. Aproveitam a suposta liberdade que lhes é conferida pelo conforto financeiro, não para descobrirem a ocupação e caminho de vida que mais os realiza, mas antes para se submeter a uma doutrina inquestionável e rígida, que lhes é imposta e alimentam.
Nesta doutrina existe como que um decálogo que define coisas como o que são carreiras profissionais dignas; o que são estilos de vida dignos de admiração; o que merece ser descrito por “ah… que desperdício ele ter ido por ali”; quem devemos seguir ou invejar, entre outras coisas. O principal critério é, tanto quanto a minha hermenêutica permite, o dinheiro. Se paga bem, em princípio é digno; se paga mal, é desperdício.
Aquilo que era suposto “libertar” e permitir optar por uma multiplicidade de estilos de vida, ocupações ou profissões, acaba por ser ter o efeito contrário. É um paradoxo revelador. Quem beneficia daquilo que é considerado como o principal pressuposto para a liberdade de escolha – o dinheiro – é quem mais conscientemente renuncia a tomar uma verdadeira escolha em liberdade.
É um paradoxo revelador. Quem beneficia daquilo que é considerado como o principal pressuposto para a liberdade de escolha – o dinheiro – é quem mais conscientemente renuncia a tomar uma verdadeira escolha em liberdade.
Parece que, quanto mais numeroso o leque de caminhos, motivações e ocupações que podemos seguir, maior a tentação em escolher o caminho da produtividade e capitalização económica e de estatuto. Como se fôssemos máquinas de produção. E uma vez que o mercado é cada vez mais competitivo, cada vez maior se torna a necessidade de nos focarmos em nós próprios. É fundamental concentrarmo-nos, potencializarmo-nos, otimizarmo-nos e outros verbos reflexivos centrados no próprio sujeito.
Com as escolhas de uns, sofremos todos. Não sofremos diretamente, pois ninguém agride ninguém. Mas todos perdemos o bem potencial que daí poderia advir. Regressemos ao exemplo luminoso de Luís Miguel Cintra e dos primórdios da nossa democracia. Se Cintra e os seus companheiros adotassem uma outra postura, mais egoísta, descomprometida e menos formativa ou altruísta, não magoavam nem desrespeitavam ninguém. A sua omissão ficaria escondida no anonimato. Mas todos perderíamos: os que não têm, a quem deixou de ser dado; os que têm mas não deram, deixaram a sua humanidade por cumprir; e todos nós porque, perdendo uma oportunidade de colaborar, enfraquecemos os laços que nos unem e a justiça que nos chama.
Não tenho dados que sustentem esta tese, pois resulta mais do olhar do que da matemática. Tão pouco tenho soluções que a resolvam. Desconfio que comece pela reflexão da “sorte” que temos, pois daí nasce a responsabilidade que temos uns pelos outros. Só assim teremos capacidade para viver e trabalhar acompanhados de “uma reflexão permanente sobre o próprio ofício” a que nos entregamos. Seja ele qual for, onde for, com quem for, será para os outros.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.