Com o aproximar de mais uma sessão do Sínodo sobre a sinodalidade, parece que nos encontramos de novo divididos. No final do Concílio Vaticano II, o teólogo Karl Rahner dirigiu uma carta “a um católico preocupado” e outra “a um católico impaciente”. A situação parece repetir-se. Infelizmente, Rahner já morreu e eu estou muito longe da sua genialidade, mas esperemos que, por uma vez, não sejam só boas intenções a povoar o inferno.
Nos últimos anos, alguns de nós, “cristãos autênticos”, como sinceramente os chama Karl Rahner, têm sentido que as reformas levadas a cabo na Igreja, desde há muito tempo, apenas trouxeram intranquilidade e insegurança. Por outro lado, há quem, tendo saudado estas reformas com esperança, vê que delas nada de novo nasce: só “a mesma teologia”, “o mesmo aparato burocrático”; e uma Igreja “fracionada entre receio e desconfiança de ambos os lados”.
Ainda assim, se nos queremos dividir, as melhores categorias serão mesmo, sem dúvida, vermo-nos como impacientes ou intranquilos e não como progressistas ou conservadores. Uns temem termos ido demasiado para a frente, destruindo a verdade. Outros temem que a verdade continue abafada pelas máscaras do passado. E isto não tem só a ver com grandes decisões sobre o futuro da Igreja. É, também, sobre as pequenas coisas das nossas pequenas comunidades.
Uns temem termos ido demasiado para a frente, destruindo a verdade. Outros temem que a verdade continue abafada pelas máscaras do passado. E isto não tem só a ver com grandes decisões sobre o futuro da Igreja. É, também, sobre as pequenas coisas das nossas pequenas comunidades.
Independentemente do lugar onde nos reconhecemos, é importante, antes de mais, que nos sintamos reconhecidos. Há verdade na impaciência e há verdade na intranquilidade. Estão certos os intranquilos que afirmam “que na vida litúrgica, e noutros setores da Igreja há arbitrariedade, improvisação, e uma petulante sofreguidão de renovar por conta própria que é deplorável”, mas, também estão certos os impacientes quando dizem que nem o Concílio, nem o Sínodo, nem qualquer outra decisão, encerrou a teologia para sempre. No entanto, da assunção da verdade que existe em cada posição não se segue a anulação da diferença. Se queremos seguir a intuição de Karl Rahner, o passo seguinte é libertamo-nos da autorreferencialidade.
Todavia, isso não acontece sem um ponto comum. Há uma diferença entre a impaciência e a revolta como, também, há uma diferença entre a intranquilidade e a raiva. Essa diferença é ser capaz de reconhecer, ou não, como Rahner anuncia, que após o Concílio, apesar de muitas linhas de leitura de teologia e das suas muitas escolas, há realmente “uma teologia nova e viva que faz justiça ao homem atual”. Este é a única bifurcação do caminho.
A verdade é que no pós-Concílio, como hoje, por mais fraturas e mudanças de modelos, é inverosímil defender que algo de fundamental tenha mudado. Aliás, estas fraturas e mudanças de modelos não são só necessários à catolicidade da Igreja, como são também resultado dessa mesma catolicidade. A questão é saber se somos “realmente crentes e não partidários de um catolicismo folclórico e pinturesco ou estetas que colocaram à margem a vida real”.
Neste sentido, quer para impacientes, quer para intranquilos, a receita inicial só pode ser reconciliarmo-nos com a imperfeição. Para os intranquilos, é importante relembrar que a vida está cheia de obscuridades, de pontos cegos, de matizes que não são “produzidos artificialmente através da malícia libertina dos teólogos apostados em não deixar nada de pé”. Como é importante recordar que não existe “nenhum método milagroso, que só tenha partes boas, que não faça uma renúncia de algo positivo, que não comporte nenhuma classe de perigos”. Aos impacientes, é sempre necessário repetir que uma teologia “honrada e autocrítica” nunca é uma teologia de franco-atirador, mas vive “disposta a dar a última palavra à Igreja e ao seu magistério”; que a miséria da Igreja, tantas vezes denunciada, também tem o contributo da nossa própria miséria, e que, tal como o Concílio, tudo o que é de verdade autêntico, “requer um largo tempo antes de chegar a concretizar-se na prática”.
Não obstante, quer estejamos impacientes, quer intranquilos, somos fundamentais. Fundamentais, quando exercemos um papel crítico sem formar um exército contra algo ou alguém. Fundamentais, quando não nos revoltamos por nada acontecer sem “refezes, retrocessos, hesitações e dúvidas penosas”. Fundamentais, porque a Igreja precisa de ser sempre questionada, também, a partir de dentro, e é necessário perceber se esta ou aquela doutrina ou prática preservam a unidade, ao mesmo tempo que consagram a diversidade necessária e nunca acidental. Fundamentais, quando nunca duvidamos que a perda da novidade equivale ao esquecimento do antigo e que o terraplanismo do velho é a destruição acelerada do novo.
Rahner está certo quando diz que “a paz na Igreja não é a paz própria dos cemitérios”. A disputa, a dissensão, o confronto e o mal-estar são fundamentais e fugir deles é fugir do Evangelho. E parece-me tremendamente nocivo e pouco cristão, uma cada vez mais frequente tendência a um consenso de palavras decorativas, que só terminará quando não houver medo de ser ou intranquilo ou impaciente. Na Igreja, todos não concordamos com tudo e isso não é, nem nunca foi, um problema. O ponto foi sempre sabermos aceitarmo-nos, acolhermo-nos e amarmo-nos como irmãos.
PS- todas as frases entre aspas são citações das obras de Karl Rahner
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.