Há três anos que vivo fora de Portugal e a experiência e perspectiva de emigrante mostram-me que somos de facto um país pequeno que passa despercebido para a grande maioria das pessoas, excepto como destino para umas férias agradáveis e baratas. Esta percepção generalizada é, em considerável medida, reflexo da realidade política e económica das últimas décadas, da qual a corrupção figura como um dos principais problemas. Nos últimos dois anos, fomos perdendo conta do número de casos de corrupção envolvendo dirigentes com responsabilidade pública. Ao comentar esta realidade com alguns colegas não portugueses, apercebo-me que, de uma forma generalizada, os escândalos de corrupção no sul da Europa não são vistos por eles com grande surpresa. É caso para perguntar: será a corrupção um traço genético-cultural que recebemos? Apesar de não acreditarmos hoje em fatalismos e teorias de predestinação natural, a atitude perante esta realidade permanece a mesma: achamos que o sistema político é mesmo assim, acabamos por acreditar que tudo pode acontecer e que nada é verdade. Vivemos num clima de suspeição, no qual a presumível inocência do ‘outro’ se transforma rapidamente em presunção de culpa.
Todavia, a corrupção é sintoma de um problema maior e mais profundo: a incapacidade para usar e lidar com o poder. Com frequência, o poder transforma-se em controlo, que consigo traz a sede, ainda que inconsciente, de vanglória. Sempre que isto acontece no espaço público, o sistema político torna-se ideologicamente mais fechado e envolto em si mesmo. No livro Origens do Totalitarismo, a filósofa política Hannah Arendt relembra-nos do perigo de sistemas ideológicos que tendem a subordinar tudo a um modelo político consistente, mas fechado. Nestes contextos, a verdade acaba sempre por ser preterida, quer para salvaguardar uma certa ordem ou conjunto de privilégios, quer para evitar o confronto com o peso da realidade. Mas será legítimo preterir ou manipular a verdade ainda que para salvaguarda de uma certa estabilidade? Que estabilidade? E de quem?
É neste enquadramento que me arrepia pensar na recente proposta do Governo para diminuir a autonomia do Ministério Público face ao poder político. Esta iniciativa representa um claro retrocesso no que diz respeito à interdependência entre dois poderes fundamentais ao serviço de um estado democrático.
É neste enquadramento que me arrepia pensar na recente proposta do Governo para diminuir a autonomia do Ministério Público face ao poder político. Esta iniciativa representa um claro retrocesso no que diz respeito à interdependência entre dois poderes fundamentais ao serviço de um estado democrático. Não é estranho a falta de atenção que tem sido dada a um assunto que poderá afectar princípios basilares de um Estado de Direito? Igualmente no ar fica a questão da oportunidade e sentido desta proposta, especialmente num tempo em que o Ministério Público, apesar da escassez de recursos, tem dado provas da sua capacidade de investigação. Se analisarmos com atenção, a alteração que está em cima da mesa é um exemplo claro desta incapacidade para uso do poder, que tende a concentrá-lo numa só entidade e falha em reconhecer que só na interdependência de relações do poder a liberdade e a responsabilidade têm espaço para crescer e florescer. O abuso e a concentração do poder matam a iniciativa e criatividade dos indivíduos e coletividades, pois restringe quase sempre a sua capacidade para interromper processos automáticos, a capacidade para arriscar e não temer o novo como uma ameaça.
O poder é sem dúvida uma realidade fundamental e necessária que marca as nossas vidas, mas igualmente perigosa. É urgente aprendermos a ver as relações de poder com um novo olhar. Arendt oferece-nos algumas pistas. O poder e as relações de poder são forças dinamizadoras constituintes da nossa vida em sociedade. Não têm de ser vistas como negativas em si mesmo. Ao mesmo tempo, o poder não pode ser entendido ou limitado, como parece ser o entendimento de alguns deputados proponentes desta alteração, a uma ideia de ordem/obediência ou comando/execução, onde alguns têm o direito a “comandar” e outros são impelidos a “obedecer”. Para Arendt, o poder relaciona-se mais com a possibilidade e oportunidade para se estimular espaços de liberdade e iniciativa. Poder não é sinónimo de soberania ou normatividade. Tem, sobretudo, a ver com a capacidade para a acção e emerge normalmente na habilidade para se agir concertadamente. Todavia, se os diferentes poderes que integram a nossa sociedade são suprimidos ou continuamente censurados, o espaço público torna-se cada vez mais limitado, pobre e menos livre.
Nota editorial: Este artigo conclui uma série de três reflexões em que se procurou discutir alguns dos desafios e problemas que a democracia Portuguesa enfrenta hoje.
Artigo I – Do poder do povo ao poder do bureau
Artigo II – O que é que o aquecimento global, o Brexit e a corrupção têm em comum?
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.