Há cerca de 15 dias, a Organização Mundial de Meteorologia publicou um relatório confirmando que os últimos quatro anos foram os mais quentes desde que há registos. O Secretário-geral da ONU, António Guterres, reagiu ao relatório afirmando que a diminuição de emissão de gases com efeito de estufa e adaptação de outras medidas que visam reduzir o impacto ambiental são prioridade urgente e global.
Várias cidades europeias têm já em execução planos de restrição progressiva da circulação de automóveis a diesel. Em Portugal, porém, ainda no mês passado, os comentários do Ministro do Ambiente acerca da desvalorização dos carros a diesel no espaço de cinco anos, foram rapidamente criticados e considerados “precipitados e inviáveis” no contexto de vida de muitas famílias portuguesas. O tema ficou por aqui, não se gerando qualquer discussão séria sobre o assunto, nem a ponderação pública de alternativas. Uma questão de prioridades, diria… Mas que prioridades? E as prioridades de quem?
Em certa medida, este episódio, a par de outros acontecimentos que têm enchido as páginas dos jornais como o Brexit e a negociação interminável deste processo, ou os casos frequentes de corrupção no governo e em instituições públicas e privadas, revela o quão a noção de bem comum se tem tornado cada vez mais distante, abstrata e desconhecida para governantes e cidadãos. Qual a razão deste esquecimento?
No contexto ocidental, a sociedade é hoje vista não tanto como o lugar de partilha de uma vida comum, mas sobretudo como o resultado da soma de indivíduos, que dispõem de uma relação pessoal e contratual com o Estado. A partir da idade moderna, o espaço político foi-se simplificando, sendo cada vez mais marcado pela dualidade indivíduo/Estado soberano, desvalorizando-se outras formas de vida comum e pública. Esta é também a época em que se começa a desenvolver o conceito de pessoa, enquanto sujeito de direitos e deveres salvaguardando-se, deste modo, a sua dignidade e liberdade. Todavia, como recordava o filósofo político francês Jacques Maritain, este reconhecimento da pessoa não se encerra em si mesmo, mas manifesta-se na sua abertura e relação com os outros. Existe, portanto, uma necessária tensão entre a pessoa-indivíduo e a pessoa-ser social: por um lado, a pessoa é parte da comunidade política enquanto sujeito e participante do bem comum mas, por outro, não é escravo dessa comunidade, aniquilando com isso a sua unicidade e liberdade. O individualismo, por seu turno, tende a negar que a pessoa é parte da comunidade política, vendo a pessoa (apenas) como um átomo isolado detentor de direitos. Neste ponto reside, para mim, uma das razões do esquecimento generalizado da ideia de bem-comum: com o crescente individualismo, os interesses pessoais e particulares perderam de vista o interesse comum.
No contexto ocidental, a sociedade é hoje vista não tanto como o lugar de partilha de uma vida comum, mas sobretudo como o resultado da soma de indivíduos, que dispõem de uma relação pessoal e contratual com o Estado.
Tudo isto se torna ainda mais claro se prestarmos atenção à linguagem que usamos na maioria das nossas relações com as instituições do Estado. O cidadão português é um utente ou mesmo cliente (como no caso da Segurança Social). Estes atributos revelam que o contacto com o Estado é, acima de tudo, para satisfação de necessidades pessoais e privadas. Neste contexto, o Estado assume-se cada vez mais como um organismo que procura, sobretudo, prestar um serviço individualizado e não tanto como uma entidade com visão que procura o bem comum. Perder a noção do bem comum, é perder um horizonte e visão para o país, restringindo-se cada vez mais ao papel de mero prestador/garante de serviços e satisfação de necessidades individuais e imediatas.
O individualismo, com efeito, representa uma ameaça séria à vitalidade de um Estado democrático. O bem comum não é a soma de interesses privados, mas o bem que promove a arte de viver em comum e a qualidade de vida de todos, atendendo em especial aos mais marginalizados. De facto, parafraseando Mandela, a qualidade de um estado democrático deve medir-se não pela forma como trata os mais importantes, mas os mais pequenos e fragilizados. O bem comum da sociedade consiste na comunhão de todas as pessoas numa vida com qualidade. Esta é uma responsabilidade de todos os cidadãos, mas também do próprio Estado, que tem como dever fomentar uma rede de relações de interdependências geradoras de oportunidades.
Eça de Queirós, no contexto das “Conferências do Casino”, criticando o estado de apatia e resignação social, escrevia que Portugal ainda se encontrava a descansar da viagem longa e extenuante de Vasco de Gama à Índia. Talvez hoje esta apatia, à qual se junta também uma certa dispersão, tenha uma outra causa: o facto de andarmos tão ocupados com os nossos próprios interesses, numa conjuntura social e estrutural que a isso convida e (quase) obriga.
Aparentemente, o aquecimento global, o Brexit e a corrupção nada têm em comum…. Mas na verdade, nada têm do “comum.”
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.