Recentemente, o diretor de um Centro Social com mais de 20 utentes recebeu uma notificação do Instituto de Segurança Social a comunicar que, em cerca de 15 dias, aquela IPSS seria alvo de uma ação de fiscalização. Para o feito, foi solicitado que o diretor reunisse e enviasse cópia de todos os documentos elencados numa lista com mais 25 pontos, alguns dos quais passo enumerar:
– licença de software de suporte ao registo contabilístico;
– contrato de prestação de serviços do contabilista certificado;
– listagem de equipamentos de transporte;
– fichas individuais do imobilizado corpóreo;
– inventário actualizado;
– extractos de movimentos de contas do ano de 2017;
– nota de lançamento da aplicação de resultados líquidos de 2017 e respectiva acta de Direcção;
– apólices de seguro do imobilizado e de acidentes de trabalho;
– contrato de higiene e segurança no trabalho;
– contrato para HACCP;
– certificado de segurança contra incêndios;
– certificado higiossanitário;
– actas de deliberação acerca da última contratação pessoal;
– quadro de pessoal relatório único do ano de 2017;
– mapa de recursos humanos com afectação por actividade;
– listagem nominais de utentes de todas as respostas sociais, incluindo data de nascimento, data de admissão, valor da mensalidade
… e a lista continua na página seguinte!
Quanto tempo da sua vida despende em média um cidadão para resolver determinada situação junto de um serviço ou instituição? Quantos procedimentos se vê obrigado a seguir para ver o seu propósito analisado? Quantos relatórios tem de redigir para realizar e validar a sua atividade? A burocracia é hoje uma realidade estruturante da nossa sociedade, que afecta e condiciona a vida quotidiana dos cidadãos.
O que significa burocracia?
O dicionário de língua portuguesa define burocracia como uma forma de administração e organização, de natureza pública ou privada, por parte de funcionários, sujeitos a uma estrutura hierárquica e aos ditames de regulamentos. Assenta, simultaneamente, numa fragmentação do trabalho e estandardização de procedimentos. É por natureza impessoal e procura pautar-se por uma racionalidade formal.
Todavia, a realidade vivida pela maioria dos cidadãos descobre um outro significado e implicação do termo burocracia. Se em vez de recorrermos às páginas da enciclopédia ou do dicionário, perguntarmos às pessoas o que, de acordo com sua experiência, quer dizer burocracia, facilmente encontraremos adjetivos e expressões tais como: excesso de regras, sistema complicado, morosidade, ineficiência, centralismo. Ambos os significados são importantes e não têm de ser entendidos como interpretações necessariamente opostas, incapazes de qualquer articulação. No entanto, acredito que a realidade concreta experimentada pelas pessoas deve ser o ponto de partida na análise do funcionamento e impacto da burocracia na democracia hoje.
A burocracia, que em tempos Max Weber pensou que nos poderia libertar da arbitrariedade das relações humanas, da corrupção e favorecimentos pessoais, torna-se ela própria um sistema arbitrário que deixa de servir os interesses legítimos das pessoas que representa, passando a exercer o seu domínio através da concentração e monopolização de todas as fontes de poder e desrespeito por qualquer princípio de equidade.
Muitas das nossas relações institucionais, sejam elas públicas ou privadas, são marcadas pelo tempo que despendemos a responder a formalidades e procedimentos prévios e não na resolução de um problema ou na realização da ação propriamente dita. A burocracia invadiu o espaço da ação e isto é visível na forma como muitas das vezes o trabalho é organizado. A título de exemplo, seria interessante averiguar, junto de diferentes organizações, quanto tempo no cronograma de um projecto de um ano destinam à apresentação de candidaturas e à submissão de relatórios de avaliação e execução intermédia e final. Esta forma de operar, cada vez mais generalizada e pesada, é sentida pela maioria das pessoas nas mais diversas áreas da sua vida, (trabalho, educação, saúde) e está a acusar cansaço. A burocracia, que em tempos Max Weber pensou que nos poderia libertar da arbitrariedade das relações humanas, da corrupção e favorecimentos pessoais, torna-se ela própria um sistema arbitrário que deixa de servir os interesses legítimos das pessoas que representa, passando a exercer o seu domínio através da concentração e monopolização de todas as fontes de poder e desrespeito por qualquer princípio de equidade.
E quando é que isto acontece?
A burocracia não é, na sua génese, uma forma de governo, mas, como dizia no início, uma forma de organização que se limita a administrar a coisa pública através da aplicação tendencialmente uniformizadora de procedimentos e regulamentos. Governar implica estabelecer uma direcção e conduzir a instituição nesse rumo. Um dos sintomas de que uma instituição passou a ser ‘controlada’ pela máquina burocrática manifesta-se quando esta perde de vista o seu fundamento último porque se vê ocupada entre procedimentos que entretanto foi criando. Hannah Arendt dizia que a burocracia é a forma de administração na qual todos são privados de liberdade política, ou do poder de agir. Num sistema burocrático levado ao extremo não existe ninguém para confrontar, apresentar queixa, ninguém é responsável por reverter a situação e a pessoa sente-se cercada e encurralada num enredo infindável de normas que visam apenas o controlo. Verifica-se, com efeito, um certo sentimento de impotência diante de um sistema que parece operar por si só, sem um responsável visível, e onde aparentemente ninguém está em controlo.
A par da falta de rumo, surge a falta de legitimidade. As instituições representam a materialização de um poder atribuído e reconhecido por um conjunto de pessoas. É, pois, neste consentimento generalizado que reside a sua legitimidade, e não numa lei natural ou numa qualquer justificação de ordem metafísica. As instituições nascem das relações humanas e a sua legitimidade do poder que lhes é reconhecido. Não são um fim em si mesmas e devem, com efeito, estar ao serviço das pessoas e ser um suporte no exercício da cidadania. Sempre que excedem ou violam a finalidade da sua existência, a sua atuação pode e deve ser questionada. Uma instituição pública perde legitimidade e começa a decair quando excede os limites do poder atribuído e deixa de ser promotora do desenvolvimento integral da pessoa e de todas as pessoas.
Por último, na prioridade da obediência inquestionável sobre o respeito institucional encontramos um outro sintoma caracterizador desta situação. Nestes contextos, a solidez de uma instituição impõe-se, primeiramente, pela garantia de que o procedimento é obedecido e não pelo respeito adquirido através do funcionamento justo e adequado da instituição, necessário à promoção da qualidade vida e do bem comum.
É indiscutível a necessidade da existência de uma certa justiça procedimental e organizacional na administração de instituições públicas e também privadas. A questão coloca-se (quase sempre) nos limites, i.e., quando os meios e mecanismos perdem a sua razão de ser. A burocratização excessiva das instituições públicas representa uma forte ameaça à democracia, a par do crescimento dos extremismos e do autoritarismo.
É indiscutível a necessidade da existência de uma certa justiça procedimental e organizacional na administração de instituições públicas e também privadas. A questão coloca-se (quase sempre) nos limites, i.e., quando os meios e mecanismos perdem a sua razão de ser. A burocratização excessiva das instituições públicas representa uma forte ameaça à democracia, a par do crescimento dos extremismos e do autoritarismo. Na verdade, a liberdade individual e coletiva dos cidadãos é constante e silenciosamente coartada por um problema mais subtil mas pervasivo: o aparato burocrático.
Por que razão nos deixámos invadir por esta excessiva burocratização do espaço público e da vida privada inclusive? O que está na raiz deste fenómeno generalizado? Max Weber apontou algumas razões que se podem subsumir na ideia de que a integridade do procedimento é garante suficiente de justiça e, por isso, se sobrepõe à verdade material. O que nos diz a realidade concreta, no entanto, é de que na raiz da organização burocrática reside uma desconfiança intrínseca na capacidade de decisão e atuação do outro.
Em suma, o cuidado e futuro da democracia impõem-nos a urgência de restaurar a confiança política e social não só dos cidadãos nas instituições, mas também das instituições no valor, na liberdade e criatividade individual e coletiva dos cidadãos. O caminho terá necessariamente que passar por uma humanização das instituições: dar-lhes um rosto, restaurar relações e as ligações que se vão deteriorando, estar disponível para atender a especificidade do caso concreto. Tudo isto, no limite, pressupõe a ousadia e coragem de um ‘decrescimento’ do tamanho e do peso institucional.
*Este é o primeiro de um conjunto de três artigos que procuram discutir alguns dos desafios e problemas que a democracia Portuguesa enfrenta hoje.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.