Advento em tempo de pandemia

Para que um doente se alegre com o anúncio da chegada do médico é preciso, em primeiro lugar, que tenha consciência da sua enfermidade e, depois, deseje curar-se.

Por razão da actual pandemia, o tempo litúrgico do Advento, agora iniciado, ganhou uma especial pertinência.

Pode acontecer que o Advento, que antecede e prepara a solenidade do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, mais não seja do que um compasso de espera para o Natal, que necessariamente ocorrerá depois de esgotado este tempo, do mesmo modo como depois do Outono vem, inexoravelmente, o Inverno. O calendário habitua-nos a uma certa rotina que, muitas vezes, impede que os tempos litúrgicos sejam vividos com aquela intensidade de oração e ação, ou seja, de conversão, que lhes é própria. Mas os ciclos litúrgicos são sempre um convite a um esforço, pessoal e comunitário, de acertar o passo da Igreja e do mundo pelo ritmo, sempre criativo e redentor, de Deus Nosso Senhor.

O vírus letal que já tantas mortes causou e, infelizmente, mais algumas, decerto, ceifará, é uma versão moderna daquele outro vírus que a vinda de Jesus Cristo veio curar: o pecado. Houve quem dissesse que o pecado moderno é a falta do sentido de pecado e, por isso, para muitos não faz sentido preparar, ou celebrar, a vinda do Redentor. Para que um doente se alegre com o anúncio da chegada do médico é preciso, em primeiro lugar, que tenha consciência da sua enfermidade e, depois, deseje curar-se.

Uma figura bíblica recorrente deste tempo litúrgico do Advento é João Baptista, ao qual coube a delicada missão de preparar os seus contemporâneos para a vinda do Messias. Como o fez? Instituindo um baptismo de penitência, que ainda não era o homónimo sacramento, mas um rito que ajudava os homens a consciencializarem-se da sua condição de pecadores e, por isso, da absoluta necessidade de um baptismo, ou lavagem espiritual, que só Deus lhes poderia proporcionar.

A verdadeira pastoral cumpre-se na verdade do reconhecimento da nossa condição de pecadores e na expectativa da salvação que, em Cristo e pela sua Igreja, a todos é oferecida.

O genuíno empenho pastoral em todos compreender, acolher e animar, não pode levar ao esquecimento da culpa, nem da necessidade da remissão dos pecados. A verdadeira pastoral cumpre-se na verdade do reconhecimento da nossa condição de pecadores e na expectativa da salvação que, em Cristo e pela sua Igreja, a todos é oferecida. Ao doente pede-se a sinceridade da sua confissão, sem a qual o médico não pode fazer o diagnóstico do seu estado de saúde. O mesmo se diga do confessor, que só poderá ajuizar sobre o estado da consciência do fiel, se este se souber dar a conhecer com humilde sinceridade. Jesus de Nazaré não curou todos os doentes, nem absolveu todos os pecadores: apenas os enfermos que Lhe revelaram as suas maleitas e os pecadores que, contritos, Lhe confessaram os seus pecados.

A fé que salva é a que nasce daquela contrição que se faz confissão, na esperança do perdão divino, mas não aquela que, baseada na autorreferência, se esgota na farisaica justificação. O cristão que se considera puro permanece pecador, enquanto aquele que se confessa pecador, justifica-se pela graça do seu baptismo de penitência, quer por via do sacramento da iniciação cristã, quer pela posterior absolvição sacramental. O pior pecador não é, decerto, aquele que cometeu pecados objectivamente mais graves, mas aquele que, mesmo não os tendo cometido tantos, ou tão graves, ignora que o é. As piores doenças não são as que doem muito, mas a que não se sentem, porque ninguém lutará contra um mal que nem sequer sabe que padece.

Se em relação ao actual vírus, não faltam os negacionistas, o mesmo se pode dizer em relação ao pecado. São João Paulo II, na exortação apostólica pós-sinodal Reconciliação e Penitência, define o pecado como ‘acto suicida’. Ou seja, esclarece que a razão de ser da ofensa a Deus não é uma suposta susceptibilidade divina, como se o Criador nos tivesse querido impor um conjunto de deveres arbitrários, apenas para provar a nossa humildade e obediência. A razão de ser do pecado é, sobretudo, o próprio bem da criatura: o pecado ofende a Deus na medida em que desvia o homem da felicidade para a qual o Criador o destinou.

Todos, sem excepção, somos chamados a ir ao encontro do Senhor que vem, quer por via do sacramento da iniciação cristã, para os que ainda o não receberam, quer, para os que já são cristãos, pelo sacramento da confissão.

Como nem sempre o ser humano tem consciência do que lhe convém, Deus teve que impor, como seus mandamentos, as leis que asseguram não apenas a nossa salvação eterna, mas também a nossa felicidade terrena. Neste sentido, o pecado que é, subjectivamente, um acto suicida, é também, objectivamente, a transgressão da Lei. Se o pecador tivesse consciência de que, quando peca, é a si mesmo que principalmente ofende e, secundariamente, a Deus, na medida em que o Criador nos ama e quer o nosso bem, bastaria que fosse conscientemente ‘egoísta’ para não pecar! A santidade e a felicidade, bem como a graça e a natureza, não são conceitos que se contrapõem, mas que se implicam: a santidade é o nome cristão da felicidade e, se Deus nos manda ser santos é porque, em última análise, nos quer felizes, agora e eternamente.

Neste Advento da solenidade do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, a humanidade vive também o advento da/s vacina/s que se espera que cure/m o vírus que causou esta pandemia mundial.  A vacina para o verdadeiro mal, que é o pecado, já existe na Igreja, sobretudo em duas modalidades, ambas divinamente eficazes: os Sacramentos do Baptismo e da Reconciliação e Penitência. Todos, sem excepção, somos chamados a ir ao encontro do Senhor que vem, quer por via do sacramento da iniciação cristã, para os que ainda o não receberam, quer, para os que já são cristãos, pelo sacramento da confissão.

“O Espírito e a Esposa dizem: ‘Vem!’. E quem ouve, diga: ‘Vem!’. E o que tem sede, venha; e quem quer, receba de graça a água da vida. […] Amen. Vem, Senhor Jesus! A graça do Senhor Jesus esteja com todos.” (Ap, 22, 17. 20-21).

 

O autor escreve de acordo com a antiga norma ortográfica.

Fotografia – Josh Applegate – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.