Por norma as reflexões estivais na imprensa são fantasias de calma e tranquilidade, vividas numa praia deserta que não existe em Agosto, ou numa casa de família onde tudo era bom antes de deixar de ser. Cronistas pelo mundo inteiro, alguns até emigrados, lembram passados gloriosos no Verão e aproveitam para elogiar a época do ano em que qualquer um é livre de desligar o telemóvel sem correr perigo de vida.
Sobre a televisão é que ninguém fala. Nunca ninguém ouviu dizer que, no Verão, desliga-se o aparelho e pronto. Não há detox televisivo e ainda bem. Não quero fazer nenhum detox na minha vida, porque não me considero intoxicada. Estou simplesmente a viver, como qualquer pessoa, por vezes abusando de certos alimentos, mas nada que mereça uma intervenção dramática que me obrigue a uma abstinência imposta por uma sociedade frívola e entediada. Deixem as pessoas em paz com os seus telemóveis! E com a televisão ligada na Netflix ou num canal de filmes e séries.
E o que se aprende a olhar para o ecrã? Se não fosse o programa “Who is America?”, de Sacha Baron Cohen, como teríamos a possibilidade de confirmar que há uma relação directa entre estupidez e maldade, ausência total de princípios, já para não falar de completa falta de discernimento? Num momento em que tudo se denuncia, não se presta a devida atenção aos estúpidos e ao mal que causam. Talvez por uma estranha moleza ou inaceitável desconfiança de que os estúpidos podemos ser nós. Porém, tendo em conta aquilo a que assistimos nesta série, será que podemos mesmo?
Se não fosse o programa “Who is America?”, de Sacha Baron Cohen, como teríamos a possibilidade de confirmar que há uma relação directa entre estupidez e maldade, ausência total de princípios, já para não falar de completa falta de discernimento?
Baron Cohen, nascido em Londres numa família tradicional judia, que numa entrevista em tempos dizia que seguia alguns preceitos judaicos, como a comida kosher, o cumprimento do Shabbat, e que tentava ir à sinagoga pelo menos duas vezes por ano, raramente ou nunca aparece em nada a ser ele próprio. Baron Cohen é Ali G, um rapper que fala uma espécie de crioulo inglês falado na Jamaica e que entrevista políticos e celebridades. Baron Cohen é Borat, um jornalista do Cazaquistão e uma personagem polémica ao ponto de ter sido convidada pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros cazaque para conhecer o país. Em ambos os casos, os métodos de Baron Cohen são ambíguos e cruéis, embora sirvam o fim penso que nobre de pôr as pessoas a dizerem o que pensam ou a mostrar aquilo que aceitam a um completo estranho. Não será a verdade, mas é pelo menos a exposição daquilo que se dispõem a aceitar como certo, o que não é nada pouco.
Em Who is America? Baron Cohen é Erran Morad, especialista israelita em técnicas de antiterrorismo, que consegue pôr um homem adulto, apoiante de Trump, vestido (enfim) de rapariga de quinze anos para atrair mexicanos e outro dentro de uma piñata a filmar, sem que nenhum ache minimamente estranho ou ponha em causa o plano bizarro de inventar uma fiesta de quinceañera para atrair imigrantes ilegais. Mas Morad fez com que Dick Cheney lhe desse um autógrafo no seu kit de tortura por afogamento. A partir daqui tudo é possível. E é mesmo tudo possível.
Mas Morad fez com que Dick Cheney lhe desse um autógrafo no seu kit de tortura por afogamento. A partir daqui tudo é possível. E é mesmo tudo possível.
Como bem referiu Emily Nussbaum, num artigo em que se mostra desconfortável com a série, Baron Cohen é facilmente reconhecido, por isso os disfarces elaborados fazem com que a sua cara pareça uma máscara, mas nem a disformidade parece suscitar a desconfiança naqueles que são apanhados na mentira. E é a estratégia que incomoda a cronista da revista civilizadíssima The New Yorker. Como naquela vez em que Baron Cohen é Rick Sherman, um ex-presidiário, que passou os últimos 18 anos na prisão e “faz arte” com o que aprendeu “lá dentro”, e engana críticos de gastronomia, como o obscuro Bill Jilla, que não têm nenhum problema em experimentar aquilo que é apresentado como sendo carne humana de um dissidente chinês em nome da alta gastronomia e acabar a agradecer à família pela carne deliciosa do filho. Até parece que é mau enganar esta pessoa horrível, usando uma produção com meios e recursos que entontecem qualquer tonto vaidoso. Não é.
Até parece que é mau enganar esta pessoa horrível, usando uma produção com meios e recursos que entontecem qualquer tonto vaidoso. Não é.
O que mais me agrada em Who is America?, além da falta de piedade pela estupidez, é a escolha democrática de alvos a expor. Da galerista ao governador, do político ao dj, pessoas conhecidas por participarem em reality shows, gurus espirituais, vendedores de iates de luxo, candidatos ao senado americano, o leque de estúpidos imorais é vasto. Podem acusar Sacha Baron Cohen de muita coisa, mas não o podem acusar de querer salvar a humanidade.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.