Gosto de olhar as pessoas como quem contempla as águas.
Há as pessoas nascente. São límpidas e transparentes, habitualmente delicadas. Correm em fio, com cinco minutos perto delas saímos renovados. São pessoas fonte, que a cada instante nos fazem aceder aos lugares onde a vida se renova. Trazem à vida uma frescura e uma alegria contagiantes.
Também há pessoas rio. São peregrinos das longas distâncias. Atravessam longos percursos, constroem o seu caminho, vencem obstáculos, são perseverantes e resistentes e não desistem até chegar à foz. Às vezes correm entre margens distantes, com leito grande, outras vezes entre orlas que quase se tocam, mas como sabem de onde vêm e para onde vão nunca se deixam vencer pela força das circunstâncias. Parece que quanto mais se aproximam do mar, maiores e mais fortes vão ficando. Estas pessoas chegam a ter barragens onde guardam recursos vitais para os tempos mais difíceis. Para si e para os outros!
Depois há as pessoas mar. Vastas e imensas, fortes e grandes. São da categoria dos visionários, daqueles que veem mais longe, para além do horizonte. Alargam-nos os sonhos e não nos deixam sonhar pequeno, mas lembram-nos o infinito e a profundidade para que somos feitos e recordam-nos sempre o desejo de os alcançar. Esticam-nos os limites e ensinam-nos que a mediocridade não serve porque o nosso coração é para a eternidade.
Também há as pessoas cascata. São como as correntes fortes, têm a força das grandes marés e das ondas gigantes. Estas galvanizam-nos, entusiasmam-nos, põe-nos a mexer, levantam-nos. Podem fazer corridas curtas, mas sempre cheias de intensidade. Têm uma força tal que são capazes de mover tudo à sua frente ou arrastar todos atrás de si.
Há ainda as pessoas chuva. Não passam pela nossa vida sem nos marcar. Só estão ocupadas em semear porque sabem que a chuva que cai na terra não volta ao céu sem produzir o seu efeito. Onde estas tocam fazem brotar vida e deixam sementes que mais tarde ou mais cedo germinarão.
Há um tipo de pessoas de que gosto especialmente. São as pessoas lençóis de água. Subterrâneas, circulam debaixo da terra, discretas ou até tímidas, mas surpreendentemente magmáticas. Trabalham no silêncio e fazem mover a engrenagem do mundo com orações e gestos escondidos, simples e concretos. Sem elas não seria possível a vida.
É certo que também há as pessoas pântano, as pessoas charco, as pessoas águas paradas e as águas poluídas, as pessoas maremoto, as pessoas enxurrada e as pessoas tempestade. Claramente, nem todas as águas são boas!
Mas seria redutor e ingénuo tentarmos encaixar as pessoas apenas num tipo de água. Somos sempre muito mais do que um qualquer rótulo em que nos encaixem. Bebemos de muitas águas e partilhamos muitas fontes
Mas seria redutor e ingénuo tentarmos encaixar as pessoas apenas num tipo de água. Somos sempre muito mais do que um qualquer rótulo em que nos encaixem. Bebemos de muitas águas e partilhamos muitas fontes. Talvez em nós convivam agora e em diversas fases da vida muitas destas águas. A água é dinâmica, imparável. Como nós. Não somos estáticos, mas vamos mudando ao longo da vida ainda que em nós habitem características que com mais estabilidade se mantém. Em nós convivem miséria e grandeza, força e fragilidade, estagnação e movimento, água boa e menos boa. Nenhuma água completamente nos caracteriza e nenhuma completamente nos sacia. Simultaneamente, somos água e somos sede. E o cruzamento não é acidental. É constitutivo.
Somos pessoas sede!
A sede é uma água que nos habita e nos dá vida. A sede é fundamental, essencial. O nosso coração é um «interminável reservatório de sede. Sede de amor. Sede de verdade. Sede de reconhecimento. Sede de razões de viver. Sede de um refúgio. Sede de novas palavras e de novas formas. Sede de justiça. Sede de humanidade autêntica. Sede de infinito» (José Tolentino Mendonça, Elogio da Sede).
No Evangelho segundo São João, Jesus apresenta-se como sede e como água. À samaritana pede de beber, ao mesmo tempo que se revela como Água Viva, a única capaz de saciar todas as sedes. E, quando sede e água se encontram, acontece salvação.
Às vezes pensamos que só quando estivermos saciados poderemos saciar, ou só quando formos água boa poderemos matar sedes. Achamos que só quando estivermos curados poderemos ajudar a curar, que só quando formos perfeitos podemos ajudar outros no caminho da perfeição. Nada mais falso. Podemos ter só uma moeda ou só cinco pães e dois peixes. Mas tentar só guardar a nossa água ou permanecer fechados na nossa sede faz-nos definhar e morrer. Cruzar as nossas águas e oferecer as nossas sedes é caminho comum de vida e redenção.
Afinal, Deus fez-se sede para nos Salvar.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.