O Capítulo Geral da Ordem dos Pregadores teve lugar entre os dias 8 de julho e 4 de agosto, em Biên Hoà, Vietname. Esta assembleia decorreu pela primeira vez em 1220, presidida por São Domingos de Gusmão (1170-1221). É uma reunião que celebra a fraternidade através da qual a Ordem Dominicana se governa a si própria e aborda assuntos urgentes relativos à vida dos frades, das monjas, e do laicado.
A defesa da justiça e da paz fazem parte da missão da Igreja e da Ordem, com profundas raízes na sua vocação e história. Basta pensar em Bartolomeu de las Casas (1474-1566), intrépido defensor da dignidade dos índios. O empenho por um mundo mais justo e pacífico integra o pilar basilar entre os suportes da vida dominicana, para além da oração, do estudo, e da comunidade: a pregação, aqui entendida como ministério, serviço. Quando fazemos a promessa perpétua, recebemos o Evangelho da paz para que esteja no nosso coração, na nossa boca, para darmos testemunho desse enraizamento na nossa vida e ação. Ser enviado em missão pregadora e evangélica é um convite para usarmos as nossas capacidades para abraçar e elevar, abençoar e curar, alimentar e abrigar. O trabalho em prol da justiça e da paz projeta o que vive no nosso coração sarado por Cristo. É o amor de Deus expresso no amor ao próximo.
O Capítulo Geral de 2004 em Cracóvia, Polónia, estabeleceu prioridades na resposta às fronteiras e linhas de fratura da humanidade. Estas fendas atravessam o mundo globalizado que habitamos, marcando-o pela injustiça e violência dos conflitos raciais, sociais, e religiosos. A Ordem considerou necessária uma análise crítica cuidada das origens, formas e estruturas de injustiça nas sociedades contemporâneas. Julgou igualmente fundamental desenvolver uma prática com vista à libertação e promoção integral dos seres humanos e da sua dignidade.
Há uma dimensão política nestas propostas e deliberações que poderá surpreender ou até afastar algumas cristãs e alguns cristãos. O recolhimento numa fé situada à margem do mundo, uma fé que não é a de Jesus, é uma tentação frequente. À partida, a ideia, tácita ou expressa, de que a política é uma atividade de políticos “profissionais” e de que a participação da restante população se resume a elegê-los é incompatível com a democracia. São Tomás de Aquino esboçou uma doutrina política que advoga a participação de todos no governo. A partir deste esboço, o desempenho de funções em órgãos de governo só pode ser encarado como um serviço à comunidade e ao bem comum. A participação política numa sociedade democrática deve ser entendida, segundo os mesmos princípios, como bastante mais abrangente, incluindo os diversos agentes que a constituem, incluindo organizações de teor religioso. É outra tentação, das tantas que nos cercam, olharmos para a política como uma tradução das nossas convicções religiosas ou para a religião como uma tradução das nossas ideias políticas. Mas sendo territórios diferentes, isso não quer dizer que não se relacionem nem comuniquem.
À partida, a ideia, tácita ou expressa, de que a política é uma atividade de políticos “profissionais” e de que a participação da restante população se resume a elegê-los é incompatível com a democracia.
É a partir desta perspetiva que a Ordem criou uma organização não governamental e sem fins lucrativos denominada Dominicanos pela Justiça e Paz, com presença na Organização das Nações Unidas (ONU). A inspiração cristã desta iniciativa significa que o seu guia para a ação social e política é o Evangelho — que anima o desejo dos membros da Família Dominicana em promover e proteger a dignidade humana, com uma visão universal e um foco local. O principal objetivo dos Dominicanos pela Justiça e Paz é aprofundar o comprometimento de todos os dominicanos na busca de soluções pacíficas para os conflitos, respondendo às causas de vários desafios contemporâneos, e levando justiça às pessoas cujos direitos foram violados.
O Delegado Permanente na ONU desde janeiro de 2014 e Promotor Geral da Justiça e Paz da Ordem desde outubro do mesmo ano é o frade e padre Michael Deeb. Nascido em 1953 em Welkom, África do Sul, Deeb estudou teologia e ciências sociais. Foi assistente e capelão de movimentos católicos no ensino secundário e universitário. Através desses movimentos estudantis, esteve ativamente envolvido nos eventos que se seguiram às revoltas estudantis de junho de 1976 e na formação da Frente Democrática Unida em 1983. Pertenceram a esta força outras figuras religiosas como a ir. Bernard Ncube e o bispo anglicano Desmond Tutu. Com fortes ligações ao Congresso dos Sindicatos Sul-Africanos e apoiante dos ativistas do Congresso Nacional Africano como Nelson Mandela, mas sempre rejeitando a luta armanda, a Frente Democrática Unida foi essencial no combate contra o apartheid. Deeb e os seus companheiros advogavam uma África do Sul não racial, unida, cuja sociedade fosse libertada da segregação entre brancos e negros e do racismo institucional.
Sob a vigência de mais um estado de emergência declarado com claros fins políticos, Deeb foi encarcerado durante 50 dias em 1985. Entrou na Ordem dos Pregadores no ano seguinte e entre 2000 e 2007 foi capelão do Movimento Internacional dos Jovens Estudantes Católicos e do Movimento Internacional dos Estudantes Católicos, sediado em Paris. Quando regressou à África do Sul em 2008, tornou-se o Coordenador da Comissão Justiça e Paz da Conferência dos Bispos Católicos da África Austral. Quando foi nomeado para as tarefas que desempenha na Ordem, foi substituído por Stanslaus Muyebe, outro dominicano sul-africano. Deeb e Muyebe relembra-nos que, no Reino de Deus, reina a justiça e paz. Cada cristão e a Igreja como um todo são chamados a ser instrumentos da presença de Cristo ressuscitado no mundo. Daí promoverem o desenvolvimento humano integral, o qual “tem lugar mediante o cuidado dos bens incomensuráveis da justiça, da paz e da proteção da criação.”
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.