Deus é, em simultâneo, a nossa paz e o nosso desassossego. Assim vivem os cristãos que o são até o âmago como o recentemente falecido Pedro Casaldáliga (1928-2020), primeiro Bispo de São Félix do Araguaia (Mato Grosso). Expressou isso mesmo numa antífona sobre o sentido da natividade num mundo tão destroçado, incluída num dos seus livros de poemas, Todavía estas palabras (1990). Este excerto é revelador:
Entre o teu rosto humano
e a glória de Deus
está o abismo
da nossa fé e tua morte.
Onde estará
a Paz
que Tu nos deixaste
se não há paz
no meio de nós?
Tu és
tanto
a Paz
como o Desassossego.
(Servicio Koinonia – Poenas Pedrro Casaldáliga)
Nasceu numa família de agricultores em Balsareny, Catalunha, em Espanha. Juntou-se à Congregação dos Missionários Filhos do Imaculado Coração de Maria (Claretianos) em 1943. Foi ordenado padre em Montjuïc, Catalunha, a 31 de maio de 1952. Em 1968, foi enviado para a Amazónia brasileira. Foi sobretudo dela que a sua poesia teológica se alimentou, com um forte cunho social e político e uma preocupação permanente com o equilíbrio ecológico. Casaldáliga foi um ardente defensor dos pobres, dos marginalizados, dos racializados, e dos povos indígenas.
Esteve na origem da Comissão Pastoral da Terra e do Conselho Indigenista Missionário da Igreja Católica no Brasil. Comentando a sua morte, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) afirmou que ele ajudou esta organização, com a qual tanto colaborou, “a manter a firmeza e a não esmorecer diante das injustiças desse mundo, [a] sua partida deixa um vácuo que jamais será preenchido”, acrescentando que a “sua humilde, sábia e forte presença andará connosco em cada passo dessa luta.”
O lema da sua atividade pastoral condensou o essencial de uma opção de serviço amoroso para libertar a humanidade do que a escraviza, de acordo com o Evangelho: “Nada possuir, nada carregar, nada pedir, nada calar e, sobretudo, nada matar.” A sua teologia da libertação foi uma resposta aos gritos lancinantes que escutava dos oprimidos e aos gestos desumanizantes que via dos opressores.
Visto que o ser humano representa uma unidade mediada, em si, espiritual-materialmente, a sua relação pessoal com Deus não deve ser separada das condições sociais e societárias em que o ser humano se realiza historicamente.
A teologia da libertação, como todas as teologias, deve ser discutida criticamente. Mas algumas críticas têm mais legitimidade do que outras, como esclareceu recentemente Gerhard Ludwig Müller quando era Prefeito da Congregação para Doutrina da Fé. Num livro escrito com um dos mais influentes teólogos da libertação, o dominicano Gustavo Gutiérrez, Müller clarifica por que razão esta é uma teologia da Igreja. Ela baseia-se no pressuposto bíblico de que o nosso relacionamento com Deus e a nossa situação no mundo e na sociedade estão interligados. Visto que o ser humano representa uma unidade mediada, em si, espiritual-materialmente, a sua relação pessoal com Deus não deve ser separada das condições sociais e societárias em que o ser humano se realiza historicamente. Inversamente, nas condições sociais antagónicas revela-se também o distúrbio do relacionamento com Deus.
Esta descrição rigorosa assenta como uma luva à praxis do “bispo do povo”, como era conhecido, que visou encontrar formas de falar do amor de Deus a quem não vê respeitada a sua dignidade ao ponto de já não se ver como humano entre iguais, muito menos criado e amado. Casaldáliga chegou ao Brasil como um missionário que queria mais escutar do que falar, mais ver do que ser visto. Foi ameaçado de morte várias vezes pelos latifundiários do Mato Grosso. Recaíram sobre ele cinco processos de expulsão do território brasileiro durante o período de ditadura militar (1964-1985), sempre contrariados pela Igreja brasileira, em particular pela voz do franciscano Paulo Evaristo Arns, Arcebispo de São Paulo. Em 1978, escrevia a Deus no meio da escuridão, no encalço da vida sem sossego de Cristo:
E chegarei de noite,
com o feliz espanto
de ver, por fim, que andei,
dia após dia,
sobre a própria palma de Tua Mão
Semeou largamente a esperança através das causas que o ocuparam: da fraternidade entre os povos, da terra, dos indígenas, dos negros, das mulheres, dos pobres, do diálogo interreligioso, dos mártires, da Igreja, de Deus. Como disse o dominicano Frei Betto num obituário que é uma celebração do seu testemunho profético: Casaldáliga foi um incansável “militante da utopia”, da construção de outra realidade, tão “necessária como o pão de cada dia”. Mas a paz que Jesus anuncia não pode ser alcançada sem obstáculos e perigos. Ou como lemos noutra antífona sua, a que chamou “Palavra”:
A paz, como a rosa,
em qualquer clima,
só cresce cuidada
e com espinhos.
(Servicio Koinonia – Poenas Pedrro Casaldáliga)
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.