“Paz na terra”. Há precisamente 60 anos, com estas palavras, S. João XXIII reagia à escalada de armamento e à ameaça nuclear que assolava a terra, em plena Guerra Fria. E fazia-o com palavras contundentes: “os povos vivem em terror permanente, como sob a ameaça de uma tempestade que pode rebentar a cada momento em avassaladora destruição” (Pacem in Terris, §111).
Tal clamor ecoa de novo neste tempo que nos é dado viver, caracterizado pelo Papa Francisco como a “Terceira Guerra mundial em pedaços”. O Sumo Pontífice encontra na invasão russa da Ucrânia um foco incontrolável de tensão, violência e destruição com consequências nefastas para o resto da humanidade.
Meses antes do regresso da guerra à Europa, Francis Fukuyama, cientista político americano, publicava a obra Liberalismo e os seus descontentes (2022). O autor notabilizou-se pela sua tese polémica, defendida no final do século XX, segundo a qual o capitalismo, associado às democracias liberais, representaria o fim da História, explicitamente em maiúscula, da evolução política dos povos (O fim da história?, 1989). Como o tempo se encarregou de provar, o fim da História ainda estava para vir, já que o liberalismo fomentou no seu seio uma série de descontentamentos que ameaçam virar-se contra as próprias sociedades liberais, baseadas no Estado de Direito, no regime democrático e no liberalismo económico. A título de exemplo, olhemos para Putin: um líder que, eleito democraticamente, chegou a qualificar o liberalismo de “doutrina obsoleta” (Financial Times, 2019).
O autor notabilizou-se pela sua tese polémica, defendida no final do século XX, segundo a qual o capitalismo, associado às democracias liberais, representaria o fim da História, explicitamente em maiúscula, da evolução política dos povos (O fim da história?, 1989).
Liberalismo e seus descontentes é uma tentativa audaz de descrever as raízes e o descontentamento de dois grupos heterogéneos que atravessam as sociedades liberais: os “populistas de direita” e os “progressistas de esquerda”. Ambos, absolutizando certos valores liberais e diabolizando outros, acabam por representar ameaças internas ao “liberalismo clássico”, que Fukuyama procura promover.
O populismo de direita, por um lado, agarra-se à autodeterminação económica, isto é, à salvaguarda da propriedade e dos direitos de transação, a ponto de diabolizar a presença e intervenção do Estado na atividade económica. O progressismo de esquerda, por seu lado, parte da denúncia das desigualdades sociais para a sacralização da autonomia identitária e grupal, cuja interpretação foi sendo alargada a ponto de ser considerada o valor mais conforme à “autorrealização”.
O populismo de direita, por um lado, agarra-se à autodeterminação económica, isto é, à salvaguarda da propriedade e dos direitos de transação, a ponto de diabolizar a presença e intervenção do Estado na atividade económica. O progressismo de esquerda, por seu lado, parte da denúncia das desigualdades sociais para a sacralização da autonomia identitária e tribal, cuja interpretação foi sendo alargada a ponto de ser considerada o valor mais conforme à “autorrealização”.
O perigo resultante destes descontentamentos é a deriva iliberal que se começa a registar. Se à direita, muitos líderes democraticamente eleitos têm atacado as instituições liberais, a ponto de porem em causa – por meio da violência – a legitimidade de eleições ou de decisões judiciais, à esquerda multiplicam-se as colonizações culturais de órgãos estratégicos da sociedade, como os meios de comunicação social e as universidades.
Os excessos do “neoliberalismo”, apesar dos níveis de crescimento e progresso alcançado nos finais do século XX, geraram níveis gritantes de desregulação financeira e desigualdade social (p. 39). Mesmo o comércio livre levanta questões aos eleitores, já que por mais que todos os países beneficiem em termos agregados do comércio livre e que a eficiência dos mercados aumente, nem todos os grupos dentro do mesmo país tiram vantagem dessa abertura comercial. Em particular, os grandes lesados são os trabalhadores pouco qualificados dos países desenvolvidos, que vêm os seus postos de trabalho trocados por mão de obra barata de países menos desenvolvidos. Veja-se, por exemplo, o efeito-contágio imediato e global das crises financeiras ou a deslocalização de indústrias de países desenvolvidos para lugares do planeta onde a mão de obra é mais barata. Uma das teses fundamentais de Fukuyama consiste em ver no neoliberalismo, sem limitações, a origem das reações políticas que se viraram contra ele.
Uma das teses fundamentais de Fukuyama consiste em ver no neoliberalismo, sem limitações, a origem das reações políticas que se viraram contra ele.
A agenda progressista encontrou, na era da “pós-verdade”, terreno fértil para proliferar. Inicialmente estava associada ao inconformismo perante situações de injustiça social, lutando por “conquistar a aceitação e igualdade de tratamento para membros do grupo marginalizado” (p. 114), partindo da premissa da igual dignidade de todos os homens. Exemplo eloquente foi o movimento dos Direitos Civis, encabeçado por Martin Luther King, nos anos 60. Mais recentemente, têm ganho preponderância fenómenos de política identitária ao nível da linguagem, do sexo e da história que “encara[m] a experiência vivida dos diferentes grupos como sendo fundamentalmente incomensurável” (p. 114). Tais políticas dão azo a um entrincheiramento entre semelhantes, incapaz de comunicarem com quem é diferente. Fragmenta-se a sociedade e a verdade, na medida em que cada grupo possui a sua. Estes movimentos da nova esquerda progressista fomentam, assim, segregações odiosas e intolerância, visto que a diferença é encarada com hostilidade. Veja-se a vaga de violência que se viveu na sequência do assassinato de George Floyd, em 2020, ou a qualificação de “deploráveis” usada por Hillary Clinton sobre os apoiantes de Trump.
Mais recentemente, têm ganho preponderância fenómenos de política identitária ao nível da linguagem, do sexo e da história que “encara[m] a experiência vivida dos diferentes grupos como sendo fundamentalmente incomensurável” (p. 114). Tais políticas dão azo a um entrincheiramento entre semelhantes, incapaz de comunicarem com quem é diferente. Fragmenta-se a sociedade e a verdade, na medida em que cada grupo possui a sua. Estes movimentos da nova esquerda progressista fomentam, assim, segregações odiosas e intolerância, visto que a diferença é encarada com hostilidade.
Face a este panorama adverso, Fukuyama afirma que o liberalismo clássico tem futuro. Neste sentido, propõe um conjunto de cinco princípios orientadores para a “renovação – se não mesmo sobrevivência – do próprio liberalismo” (p. 173). A leitura deste mapa para o futuro dos regimes liberais faz-me sugerir um paralelo desejavelmente iluminador com os princípios da Doutrina Social da Igreja (DSI), explicitados recentemente na Encíclica Fratelli Tutti (2020).
1. Fukuyama reconhece no indivíduo a célula base da sociedade, assumindo mesmo que “a promessa fulcral do liberalismo” é “proteger a escolha individual” (p.61). Efetivamente, o princípio basilar da Doutrina Social da Igreja é a Dignidade da Pessoa Humana, que dota o indivíduo de uma dimensão decisivamente relacional, visando superar o “modelo funcionalista e individualista que conduz inexoravelmente à «cultura do descarte»” (FT 271).
2. O “liberalismo do futuro” não poderá deixar de promover o “espírito público, a tolerância, a abertura de mentalidades e a participação ativa nos assuntos públicos” (p. 171). No pensamento Social Cristão, a Dignidade da Pessoa Humana não se fecha em si mesma, mas deve estar sempre orientada para persecução do Bem Comum, isto é, “um sentido social que (…) [busque] efetivamente o bem de todas as pessoas, consideradas (…) também na dimensão social que as une” (FT 182).
3. Outro princípio orientador centra-se nos direitos de propriedade que são um dos principais fatores do crescimento económico e do desenvolvimento humano. O princípio que entra aqui em diálogo é o Destino Universal dos Bens, que postula que “Deus deu a terra a todo o género humano, para que ela sustente todos os seus membros sem excluir nem privilegiar ninguém”. Neste sentido, a propriedade privada não é um fim em si mesmo e desempenha uma “função social” em prol daquele princípio (FT 120).
4. Um liberalismo renovado deve manter viva a tensão “necessária entre a identidade nacional e o universalismo liberal” (p. 152), o que implica superar a diabolização neoliberal do papel do Estado. O princípio que o Cristianismo oferece nesta questão consiste na “subsidiariedade”, valor particularmente assumido pelo Projeto Europeu: “é preciso prestar atenção à dimensão global para não cair numa mesquinha quotidianidade. Ao mesmo tempo convém não perder de vista o que é local, que nos faz caminhar com os pés por terra” (FT 142).
5. O autor opõe-se a uma conceção do ser humano que o reduza a um consumidor que apenas busca o bem-estar material. Contrapõe uma conceção humana fruto do equilíbrio entre consumidor-produtor-cidadão (p. 52). A “solidariedade” é o princípio que justapomos a esta visão mais global da experiência humana: “é possível desejar um planeta que garanta terra, teto e trabalho para todos. Este é o verdadeiro caminho da paz, e não a estratégia insensata e míope de semear medo e desconfiança perante ameaças externas. Com efeito, a paz real e duradoura é possível só a partir de uma ética global de solidariedade e cooperação ao serviço de um futuro modelado pela interdependência e a corresponsabilidade na família humana inteira” (FT 127).
O sonho do Papa Francisco por uma “Fraternidade Universal” atualiza, nestes tempos sombrios, o clamor pela “Paz na terra” que o seu antecessor, o “Papa bom”, promovia em plena ameaça nuclear. O liberalismo do futuro não poderá ignorar os descontentamentos que foi gerando, nem os valores que orientarão a sua renovação. Mais, encontrará na paz o fruto que valide o caminho a percorrer, que transcende credos e nações e que reúne os homens numa vocação comum.
A paz é a resposta, porque será a última palavra.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.