Isaías e a fragilidade – uma noite de graça

Somos frágeis, mas esta fragilidade é lugar de bênção quando deixamos que seja acolhida e amada. Foi esta a ideia que conduziu as canções do P. Duarte Rosado no concerto "Isaías e a fragilidade" que subiu ao palco no Campo da Graça.

Esperamos que alguém nos traga luz, que nos arrebate às trevas, que nos liberte das escravidões em que nos metemos pelo medo que temos da liberdade. Como o povo do êxodo que facilmente trocaria a felicidade fácil do Egipto pela difícil liberdade do deserto, onde é preciso confiar verdadeiramente, onde é preciso confiar com a vida inteira, onde não há planos de fuga.

O fruto é um povo liberto, que canta, que chora de alegria e de esperança, um povo que nunca cantaria assim se tivesse cedido à felicidade segura e garantida.

Mas o deserto não deixa de ser deserto, e é preciso atravessá-lo. A fé e a vida percorrem sempre o caminho do desejo, vivem sempre de uma espera, de um “ainda não”. Posso olhar para a sede como maldição, como adversário a saciar, mas então estou condenado a viver entretido e distraído. Posso olhar para a sede como aquilo que guia os meus passos até à fonte.

No teu deserto florescem narcisos, correm torrentes de água!

A Filipa, por fora, era alegre, ria muito. Ninguém suspeitava que, por dentro, vivia na escuridão mais profunda. Tão profunda que decidiu que esta vida não merecia ser vivida e acabou com ela. O duro não é a escuridão em que vivia, o duro era o contraste entre o fora e o dentro, é ninguém ter sabido, é ter conservado do lado de dentro o grito que a sufocava, é não ter achado que este grito era digno de ser partilhado.

Imagino um Deus que nos segreda ao ouvido quase uma declaração de amor. São palavras nas quais nem sempre acreditamos. Achamos que não é possível que Deus nos diga coisas destas, não nos julgamos dignos. Existe uma resistência a deixarmo-nos amar até à fragilidade, até ao ponto em que já não é merecido, em que já não temos créditos para apresentar.

E, por isso, Deus também nos grita, para nos abanar, para não andarmos a tentar alcançar Aquele que já nos alcançou. Ele gravou-nos na palma das suas mãos.

A nossa finitude é o único lugar de bênção, o lugar onde finalmente somos desarmados, confrontados com o nosso limite. É lugar de bênção porque é o lugar onde a nossa finitude está diante do Amor que não tem fim, onde a única coisa a que tem a fazer é render-se.

Por vezes, esta finitude apavora-nos e podemos passar a vida toda a fugir dela.

Só amor tem a força de nos restaurar, de nos reconstruir. Como neste texto (Is 54), em que a cidade de Jerusalém é reconstruída. Mas reconstruída de uma forma abundante, quase absurda, exagerada. Somos amados desta forma abundante, absurda, exagerada.

«A nossa vida é isso: espera na certeza e na incerteza, expectativa contínua. É o lugar não da resolução, mas da vigilância; não do encontro, mas da confiança e da abertura; não da posse, mas do desejo; não do acabamento, mas da imperfeição; não da infalibilidade, mas da paixão.» É muito fácil acomodarmo-nos a uma certeza, a uma fé que afasta de si o risco de viver. A busca de uma vida sem fragilidade, só dá direito a uma vida sem chama; seguríssima, controladíssima, mas sem lugar para surpresas, sem lugar para o inesperado.

Somos frágeis, mas esta fragilidade é lugar de bênção quando deixamos que seja acolhida e amada.

Andamos à procura de luz, ansiamos por que desponte em nós. Queremos que se curem as nossas feridas e que as nossas noites sejam como o meio-dia. E pode parecer que procuramos tudo isto no sítio errado.

A fecundidade só vem do que dou, não do que conservo. Encontro luz na medida em que a dou, encontro vida quando a entrego.

Texto: P. Duarte Rosado, sj

Fotografias: Rui Silva, sj

Referências bíblicas dos textos cantados: Is 9,1-6  |  Is 35,1-7.10 |  Is 43,1-6 |  Is 49,8a.9a.10b.15-16 | Is 54,5-6.10-14 | Is 58,6-12

“Isaías e a fragilidade” inclui as músicas do álbum do P. Duarte Rosado “Um grito chamado Isaías” e mais algumas canções novas. O jesuíta esteve acompanhado por um coro de 26 pessoas, um quarteto de cordas e uma banda de 4 músicos. A conceção do espetáculo e a direção do coro estiveram a cargo do P. João Goulão, sj, sendo os arranjos para um quarteto de cordas e coro da autoria de Ana Roque e Manuel Oliveira.

 

O concerto pode ser revisto aqui.