Viver o tempo de Quaresma- Renunciar

Jejuar é abraçar com esperança o presente que todos estamos a construir: na Família, no Trabalho, na Igreja, na Sociedade. É isto que nos diz o P. Carlos Carneiro, sj neste texto. Um convite que se torna mais urgente no atual contexto.

Jejuar é abraçar com esperança o presente que todos estamos a construir: na Família, no Trabalho, na Igreja, na Sociedade. É isto que nos diz o P. Carlos Carneiro, sj neste texto. Um convite que se torna mais urgente no atual contexto.

Viver o tempo de Quaresma 2020 – Renunciar

“És pó e ao pó voltarás” (Cf. Génesis 3,19). É provável que do pó que nos colocaram na testa, na última quarta-feira de cinzas, já nada reste. A marca apagou-se mas a consciência de quem somos permanece como um grito que dói: Lembra-te que és pó! Pó?! Sim, pó. Pó caído, pó levantado, pó enamorado. Esse grão de pó que nos caiu sobre a testa trazia consigo uma declaração sobre o nosso próprio destino. O jogo da vida é claro: somos pó. Por isso, a nossa grandeza nunca encobrirá a verdade da nossa pequenez. Se quisermos, a nossa pequenez poderá ser até a nossa grandeza. No entanto, da consciência do que somos é que não podemos nem nos convém fugir. Nunca.

A quaresma é o tempo adequado que a Igreja nos propõe como um caminho para sairmos da autoimagem que cada um pode ter criado sobre si próprio, fugindo ou não aceitando que é pó. Pó de 1a mas pó. Claro que ninguém é só pó. Ninguém é “só” quem pensa que é. Somos mais, somos sempre mais. Em absoluto, os outros não sabem quem somos e, igualmente também não são quem nós julgamos que são. Por isso, é importante fazermos exercícios práticos de jejum no arquivo das nossas imagens. Todos temos uma imagem pessoal mas nem sempre ela é justa ou focada.

A quaresma convida-nos a jejuar. Jejuar é não ter medo de renunciar á própria imagem. Jejuar, em 1o lugar de si próprio, do que se pensa sobre si próprio. Se não jejuarmos da imagem de nós próprios acabamos fartos, iludidos e desiludidos. Demasiadas vezes, cada um de nós, procura encontrar-se a si mesmo como se nunca tivesse conhecido o seu verdadeiro “eu”. Perdeu-se a si próprio”. Se não jejuarmos das construções que fazemos constantemente e os outros sobre nós próprios acabaremos a lutar contra a própria sombra.

Jejuar é imprescindível. Traz saúde física e espiritual. Coloca-nos no essencial. Liberta-nos do desnecessário: Do desnecessário das palavras, dos sentimentos, dos pensamentos, das ações. Façamos jejum. Jejum da nossa violência, de toda a violência. Todos sabemos que a vida é muito mais do que ter muita ou pouca razão; Façamos jejum das nossas mágoas e ressentimentos; Façamos jejum das nossas memórias negativas; Jejum das histórias absurdas; jejum das notícias duvidosas.

Jejuar é renunciar, por amor, a tudo aquilo que, mesmo sendo bom não é o essencial. Jejuar é renunciar a tudo aquilo que não nos tem deixado ser quem queremos ser, gostamos de ser, podemos e devemos ser. Às vezes, é do passado que temos que jejuar porque ninguém vive só de boas memórias; Outras vezes, também do futuro é importante jejuar porque ninguém se estrutura só a partir de possibilidades, sondagens e projetos.

Por isso, perfumada a cabeça e lavado o rosto podemos jejuar de tudo menos da imagem do que cada um de nós é para Deus, menos de Deus.

Jejuar é abraçar com esperança o presente que todos estamos a construir: na Família, no Trabalho, na Igreja, na Sociedade. Jejuar não é desconfiar. É purificar, lavar a imagem, repor a verdade, é recusar ficar onde já se esteve. É prescindir para se encher. É confiar. Encher-se de confiança, da confiança de Deus. Confiemos em Deus. Calemo-nos e ouça-mos Deus. É urgente ouvir Deus! Jejuar de todas as vozes, de dentro e de fora de si, das vozes que não são de Deus, que não falam como Deus. Se for preciso, jejuar até da voz dos que muito nos amam. Não é porque nos amam que, por si só, são automaticamente porta-vozes da verdade e da liberdade de Deus. Ser livre da voz dos que nos amam, não ser refém das suas opiniões, não é pequeno jejum.

Não “desfigures o rosto” diz o Evangelho (MT. 6. 16). O jejum da Quaresma não é uma competição de austeridades, penitências ou calvários pessoais. Jejuar não é apenas prescindir, inclusive, do que fizer falta; é encher-se das “vitaminas” que deixam o coração alegre e inteiro. A Quaresma é como aquela ansiedade gozosa, no dia anterior à boda, enquanto se executam os últimos preparativos. Já é festa mas ainda não é a festa. E a festa é o encontro com Deus, é deixar de se descobrir quem se é no espelho de vidro para saber quem se é espelho-rosto do próprio Deus. Face a face. Cada um de nós em Deus. Por isso, perfumada a cabeça e lavado o rosto podemos jejuar de tudo menos da imagem do que cada um de nós é para Deus, menos de Deus.

O Caminho que percorremos na Quaresma não é apenas a recordação de um acontecimento passado mas a atualização da cruz de Cristo, que cada um vive no seu “aqui e agora”. Sabemos que na dor não há heróis. Cristo não foi um herói, um campeão. Foi um mártir e os mártires não são heróis mas amantes. Tal como Jesus, também cada um de nós pode não ter força suficiente para chegar sozinho ao seu calvário. Para Jesus, a fragilidade e a humildade não são uma vergonha. A maior coragem de Jesus não foi a de aguentar a dor sozinho mas a de pedir e aceitar ajuda. Importa, também, fazer como Jesus: Jejuar dos que O vêm passar e usam a sua dor para se imporem. Faz, façamos todos como fez Jesus, com as mulheres que choravam ao vê-lo derrotado a caminho do Calvário. E, tal como Jesus, pelo contrário, não jejuemos de Deus Pai nem dos que não tendo respostas ou anestesias fáceis para o nosso caso, muitas vezes, nem concordando connosco, não deixam de levar a nossa cruz, de estar com cada um de nós, como esteve o Cireneu com Cristo, sem nada cobrar ou exigir.

Ajudemo-nos uns aos outros a renunciar a tudo o que não constrói e rezemos, em cada dia, como S. Francisco de Assis:

Senhor, fazei de mim um instrumento da vossa paz:
Onde houver ódio, que eu leve o amor,
Onde houver ofensa, que eu leve o perdão,
Onde houver discórdia, que eu leve a união,
Onde houver dúvida, que eu leve a fé.
Onde houver erro, que eu leve a verdade,
Onde houver desespero, que eu leve a esperança,
Onde houve tristeza, que eu leve a alegria
Onde houver trevas, que eu leva a luz.

Ó mestre, fazei que eu procure mais
Consolar, que ser consolado
Compreender, que ser compreendido
Amar, que ser amado
Pois é dando que se recebe
É perdoando que se é perdoado
E é morrendo que se vive para a vida.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.