Os números são gritos. Escondem uma realidade de que mal se fala, mas que está presente todos os dias na vida da maioria da humanidade. Cerca de 62 por cento da população mundial vive em países com violações graves ou muito graves da liberdade religiosa. E os cristãos são uma das comunidades mais atingidas. O mais recente Relatório sobre a Liberdade Religiosa no Mundo, produzido pela Fundação AIS, só nos pode deixar desassossegados…
Os números não permitem segundas leituras. A perseguição religiosa aumentou, os fiéis, em todas as regiões do mundo são cada vez mais ameaçados, e a impunidade está a aumentar. O resultado de tudo isto é dramático e afecta a vida concreta de milhões de seres humanos. Quase cinco mil milhões de pessoas vivem em países onde a liberdade religiosa é fortemente restringida. África é disso um grande exemplo. “Explosão de violência.” É assim que no mais recente Relatório sobre a Liberdade Religiosa no Mundo, lançado pela Fundação AIS dia 22 de Junho, se refere ao que ocorreu no continente africano ao longo dos últimos dois anos. Devido à expansão da actividade jihadista, este continente tem vindo a transformar-se num dos lugares mais perigosos para os cristãos. Os exemplos abundam. Durante o período em análise – 2021 e 2022 – em 37 por cento dos 54 países de África, registaram-se níveis perigosos ou mesmo extremos de perseguição e discriminação. Mali, Nigéria, Líbia, Moçambique, República Democrática do Congo, Eritreia, Burkina Faso e Sudão são alguns dos países que lideram esta lista negra. Mas, infelizmente, a violência contra as comunidades religiosas é comum a muitas outras regiões e a muitos outros países do Planeta. A China e a Índia, ambos na Ásia e os dois países mais populosos do mundo, são também uma fonte de preocupação, tal como a Nicarágua, no continente americano, onde a Igreja Católica tem vindo a ser perseguida de forma violenta pelas autoridades do país. Os exemplos, infelizmente, abundam.
Quase cinco mil milhões de pessoas vivem em países onde a liberdade religiosa é fortemente restringida. África é disso um grande exemplo.
Autocratas e fundamentalistas
O Relatório sobre a Liberdade Religiosa no Mundo, que a Fundação AIS edita de dois em dois anos, mostra que as minorias são cada vez mais reprimidas e são cada vez mais os pretextos para isso acontecer. Desde ataques terroristas, com uma frequência alarmante em África, à implementação de leis anti-conversão na Ásia, à vigilância em massa na China, com recurso, por exemplo, a câmaras de recolha de imagem com tecnologia de ponta – calcula-se que haverá só neste país cerca de 540 milhões destes aparelhos –, são muitos os instrumentos usados para a repressão das comunidades religiosas. A violência com a marca da religião mede-se também no número de países em que, desde 2021, há registo de pessoas que são assassinadas ou raptadas por causa da sua fé. Foram 40 países. E mede-se também na constatação de que, na esmagadora maioria destes casos, “os agressores raramente ou nunca são processados pelo sistema judicial”. O sentimento de impunidade que isto produz alimenta a própria agressividade contra as minorias religiosas. Em 34 países registaram-se também ataques a locais de culto ou propriedades religiosas. Mas quem são os agressores? Quem está por trás da esmagadora maioria dos ataques, da violência que atinge tantas pessoas, tantas comunidades religiosas no mundo? O extremismo islâmico e os governos autoritários lideram esta lista, representando, no conjunto, 70 países. O relatório da Fundação AIS, produzido a nível internacional por uma equipa pluridisciplinar, além de documentar inúmeras situações de violência, procura também dar respostas que ajudem a perceber como este fenómeno tem vindo a escalar ao longo dos últimos anos. “A manutenção e a consolidação do poder nas mãos de autocratas e de líderes de grupos fundamentalistas conduziu a um aumento das violações de todos os direitos humanos, incluindo a liberdade religiosa”, pode ler-se no documento.
O relatório da Fundação AIS, produzido a nível internacional por uma equipa pluridisciplinar, além de documentar inúmeras situações de violência, procura também dar respostas que ajudem a perceber como este fenómeno tem vindo a escalar ao longo dos últimos anos.
Violência com impunidade
Há uma frase que sobressai nas conclusões: “a impunidade aumentou”. Isto significa que os casos de raptos, de violência sexual, incluindo a escravatura sexual e a conversão religiosa forçada, continuaram a verificar-se e permanecem em grande parte fora da jurisdição dos tribunais. Mas há também, no período em análise no Relatório da Fundação AIS, a ascensão dos “califados oportunistas”, em que grupos radicais islâmicos ligados a redes internacionais da ‘jihad’ procuram submeter cada vez mais populações aos seus reinos de terror, alimentando a pilhagem também de recursos naturais e forçando os povos locais a uma vida de medo e de pobreza generalizada. O sentimento de impunidade que toda esta violência tem gerado, é também um sinal de preocupação. Marcela Szymanski, a editora-chefe do Relatório, afirma-o de forma clara. “Existem 61 países onde a discriminação e a perseguição são claramente evidentes, onde o direito fundamental à liberdade de pensamento, de consciência e de religião está a ser pressionado ou restringido através de novas leis. Como consequência, os cidadãos são perseguidos pelo seu próprio Governo ou são assassinados, muitas vezes com pouca ou nenhuma reacção da comunidade internacional.”
Rezar pelas vítimas
Este silêncio cúmplice diz também muito da forma como o mundo tem lidado com estas questões, como se a perseguição religiosa não fosse um atropelo aos direitos humanos mais básicos. O Relatório, que a Fundação AIS divulgou esta semana e que é produzido de dois em dois anos, é um instrumento de trabalho que permite conhecer, em detalhe, como vai o mundo no que respeita ao artigo décimo-oitavo da Declaração Universal dos Direitos Humanos. É também o primeiro Relatório divulgado já com Regina Lynch como a nova directora executiva internacional da Fundação AIS. No Relatório, logo na Introdução, Regina explica a importância do trabalho desenvolvido pela AIS, com milhares de projectos apoiados todos os anos em 132 países e com a sensibilização diária da opinião pública para a realidade, tão desconhecida ainda, da perseguição aos cristãos e a outras minorias religiosas no mundo. E sugere várias iniciativas que se podem realizar a partir do Relatório, que deve ser visto como uma “ferramenta” de trabalho. A primeira, diz quase tudo sobre a gravidade do que é abordado neste documento. “Reze pelas vítimas da discriminação e violência”, pede Regina Lynch. Não é preciso dizer mais nada…
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.