A atenção da Igreja Católica com o desenvolvimento equilibrado do indivíduo, a sua vida em sociedade e o papel do Estado, que tem a sua expressão mais sistematizada na Doutrina Social da Igreja, virou-se estes dias para o papel dos mercados financeiros. É à luz do sentido de missão da Igreja, “A promoção integral de cada pessoa, de cada comunidade humana e de todos os homens” (§2), que o mais recente documento da Congregação para a Doutrina da Fé se debruça sobre as questões económicas e financeiras e avalia os desequilíbrios dos mercados que podem surgir, como os que resultaram na grande crise de 2009-2013.
Neste documento, a Igreja convoca-nos para uma ação respeitadora da dignidade humana e orientada para o bem comum, relembrando que “o bem-estar deve ser (…) avaliado com critérios bem mais amplos que o Produto Interno Bruto de um país, levando em consideração outros parâmetros, como por exemplo a segurança, a saúde, o crescimento do “capital humano”, a qualidade de vida social e o trabalho” (§11). Nesta recomendação, a Igreja é acompanhada por instituições, governantes, políticos e economistas que em diferentes momentos têm procurado desenvolver instrumentos para avaliar o bem-estar humano para além do valor acrescentado medido nas economias de mercado. É o caso, por exemplo, da OCDE que desenvolveu um índice de “vida boa” (Better Life Index), integrando estas dimensões do bem-estar do indivíduo inserido em comunidade, do rei do Butão que foi pioneiro no desenvolvimento de um índice de felicidade, ou do economista Amartya Sen que teve uma influência preponderante no desenvolvimento do microcrédito.
O que distingue a Igreja de muitas dessas entidades é que esta preocupação transcende as palavras e teve uma expressão prática na abnegação que sacerdotes, consagrados e fiéis demonstraram mais uma vez nesta crise financeira, por exemplo em Portugal, apoiando muitos dos que sofreram com a crise. Por este motivo as suas exortações são especialmente inspiradoras.
No que diz respeito aos mercados financeiros, o documento identifica corretamente que a tentativa de deixar os mercados financeiros se autorregularem falhou e que é necessário aumentar a transparência dos produtos complexos, adequar melhor os produtos aos clientes e assegurar que as autoridades intervêm atempadamente para evitar abusos.
No que diz respeito aos mercados financeiros, o documento identifica corretamente que a tentativa de deixar os mercados financeiros se autorregularem falhou e que é necessário aumentar a transparência dos produtos complexos, adequar melhor os produtos aos clientes e assegurar que as autoridades intervêm atempadamente para evitar abusos. Refere os perigos dos mercados offshore, em particular no que diz respeito ao seu papel no encobrimento de atividades pouco éticas e até ilícitas. Reconhece ainda a importância da liberdade de iniciativa e alerta para os abusos de posições dominantes e conluios, que prejudicam a eficiência do sistema com consequências negativas para as famílias.
Muitas destas justas críticas foram também identificadas pelos agentes de mercado, pelos reguladores e pelos governantes. Na Europa, por exemplo, a recente diretiva sobe os mercados financeiros reforça a regulação na criação e distribuição de produtos financeiros, especialmente os que são dirigidos a investidores não qualificados, e aumenta a transparência nas transações financeiras.
Ao longo do documento é também visível uma grande preocupação com as assimetrias de informação e abuso de posição dominante: “O fenómeno inaceitável sob o ponto de vista ético não é o simples ganhar, mas o aproveitar-se de uma assimetria para a própria vantagem” (§17), que é uma preocupação partilhada com as entidades reguladores dos mercados financeiros no mundo ocidental.
No entanto, algumas críticas deste documento poderiam ser melhor direcionadas. Por exemplo, o documento critica aos padrões éticos dos fundos de investimento que deixaram de investir em países com dívidas públicas elevadas e com elevado risco de incumprimento pelas consequências que teve sobre as famílias nesses países (§17). Mas será razoável fazer essa crítica quando esses fundos gerem muitas das poupanças familiares, que o documento considera devem ser aplicadas em produtos sem risco (§22)? A crítica mais certeira não será neste caso aos governantes que, ignorando a sustentabilidade das suas economias, se apressaram a acumular dívidas, por vezes com a mera intenção de se manterem no poder?
No entanto, algumas críticas deste documento poderiam ser melhor direcionadas. Por exemplo, o documento critica aos padrões éticos dos fundos de investimento que deixaram de investir em países com dívidas públicas elevadas e com elevado risco de incumprimento pelas consequências que teve sobre as famílias nesses países (§17). Mas será razoável fazer essa crítica quando esses fundos gerem muitas das poupanças familiares, que o documento considera devem ser aplicadas em produtos sem risco (§22)?
O documento é também muito crítico sobre a “finança criativa” (§28), sobretudo a que está associada a motivos especulativos. Embora seja importante, como refere o documento, evitar que estes produtos complexos sirvam para esconder abusos e ilegalidades, é também importante compreender que a compra e venda rápida de ativos financeiros e produtos derivados como os Credit Default Swaps (§26), ainda que com motivações de lucro rápido, é fundamental para aproximar os preços ao real valor dos ativos e para servir de sinal sobre os riscos inerentes a cada ativo.
Este documento da Congregação para a Doutrina da Fé alerta corretamente para a importância do indivíduo e das comunidades humanas para lá do valor de mercado. Tece também considerações importantes sobre o risco das situações de abuso de mercado e faz recomendações interessantes, como é o caso da constituição de Comissões de Ética nos intermediários financeiros, que reforçariam os mecanismos de governo de empresas existentes.
No entanto, o documento seria mais impactante se reconhecesse explicitamente também o papel fulcral das economias de mercado e da globalização para a redução da pobreza mundial. Segundo o Banco Mundial, em 1990, 35% da população mundial vivia com menos de 1,9 dólares por dia. Essa percentagem diminuiu para 10% em 2013, em plena crise financeira, resultado do alargamento das economias de mercado às regiões em desenvolvimento. O reconhecimento mais assertivo de que a maioria dos instrumentos de mercado pode ter um impacto muito positivo no desenvolvimento integral do homem, e não apenas os que estão associados diretamente a projetos sociais como é o caso do microcrédito, reforçaria as críticas fundamentadas sobre a falta de transparência e necessidade de uma regulação eficiente, para além da necessidade de promover os comportamentos éticos a nível individual.
Tal como fez o Papa João Paulo II, as críticas justas ao mercado têm de ser temperadas pelo reconhecimento de que as economias de mercado têm demonstrado ser a única forma eficiente para satisfazer os meios materiais básicos das sociedades (Centesimus annus, 32, 34).
Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.