1. Como mel para a boca
No filme Snatch, realizado por Guy Ritchie, quatro ladrões disfarçados de judeus ultraortodoxos alongam-se em elucubrações sobre a tradução da profecia de Isaías 7.
A questão teológica já lhe será explicada, mas, para já, saboreie o delicioso acento de Benicio del Toro! A não perder!
2. Um texto bíblico
Esta semana apresentamo-vos a versão em hebraico (Texto Massorético) e a versão em grego (Setenta) do mesmo texto: a profecia de Isaías 7. Este texto foi escrito em hebraico muitos séculos antes de Cristo e traduzido em grego pelos judeus de Alexandria já mais perto da era cristã.
E Isaías disse: Por isso, o Senhor, por sua conta e risco, vos dará um sinal. Olhai: a jovem mulher está grávida e vai dar à luz um filho, e há-de pôr-lhe o nome de Emanuel. Porque antes que o menino saiba rejeitar o mal e escolher o bem, a terra, cujos dois reis tu temes, será devastada. O SENHOR fará vir sobre ti, sobre o teu povo e a tua dinastia, dias tais como ainda não foram vistos, desde que Efraim se separou de Judá. Ele mandará o rei da Assíria.
Isaías 7,14-17 (Texto em hebraico – Texto Massorético)
E Isaías disse: Por isso, o Senhor, por sua conta e risco, vos dará um sinal. Olhai: a virgem há-de engravidar e dar à luz um filho, e tu hás-de chamá-lo Emanuel. Porque antes que o menino saiba rejeitar o mal e escolher o bem, ele terá recusado o mal para o escolher o bem, e a terra, cujos dois reis tu temes, será devastada. Deus fará vir sobre ti, sobre o teu povo e a tua dinastia, dias tais como ainda não foram vistos, desde que Efraim se separou de Judá. Ele mandará o rei da Assíria.
Isaías 7,14-17 (Texto em grego – Tradução dos Setenta)
3. O esclarecimento
Que existem diversas versões antigas da Bíblia, já não é uma novidade para si. A questão desta semana é precisamente a diferença entre duas dessas versões naquele que é um dos textos-chave do Antigo Testamento:
No primeiro texto, o Texto Massorético (editado pelos “massoretas”, uns escribas judeus que viveram e trabalharam entre o século VI e o século X depois de Cristo), fala-se de uma “jovem mulher”, que dará à luz um filho.
No segundo texto, a versão dos Setenta (a tradução feita pelos judeus de Alexandria nos últimos 2-3 séculos antes da era cristã) fala-se de uma “virgem”, que dará à luz um filho.
Uma tal diferença está carregada de significado. É precisamente sobre isto que discutem as personagens do filme de Guy Ritchie que acabámos de lhe mostrar.
Para o evangelista Mateus (Mt 1,23), que lê o texto em grego, o termo “virgem” (parthenos) anuncia a vinda de Cristo, nascido da Virgem Maria.
Ora, o texto em hebraico, o Texto Massorético, fala de uma “jovem mulher” (‘alma, que pode também significar “virgem”, mas não necessariamente!). Para muitos intérpretes, o texto fala simplesmente do nascimento de Ezequias, filho do rei Acaz, contemporâneo do profeta Isaías.
Assim sendo, temos de assumir que os tradutores de Alexandria se enganaram ao reduzir o sentido do termo em hebraico a uma das suas aceções? Em todo o caso, não o fizeram seguramente para “provar” a verdade do cristianismo, uma vez que esta tradução é anterior à era cristã. Será que podemos assumir que Deus terá inspirado estes tradutores a precisar um bocadinho mais as coisas (do genérico “jovem mulher” para o “virgem”), transformando assim uma antiga profecia sobre o herdeiro real num anúncio da vinda do Messias? Parece ser isso mesmo que os evangelistas assumiram…
Tudo somado, há que constatar, pelo menos, que uma mesma passagem da Escritura pode alimentar esperanças bem diferentes, consoante as línguas nas quais o Espírito sopra…
4. E ainda uma palavra final…
Uma vez que evocámos a Virgem Maria, não há nada como tirar Bernanos da prateleira e voltar a ler essa belíssima passagem sobre a improvável vinda de Deus como homem, nascido de uma virgem e em segredo:
«Ele é a nossa mãe. Ela é a mãe do género humano, a nova Eva. Mas, ela é também sua filha (…) Mas, tente lá impedir os imbecis de refazer à sua maneira o “drama da incarnação”, como eles lhe chamam! Ora estes, que creem necessário, por uma questão de prestígio, colocar barretes nos juízes de paz e coser galões nas mangas dos funcionários dos caminhos-de-ferro, só poderiam encher-se de vergonha ao ter de confessar, diante dos incrédulos, que o único drama, o drama dos dramas – porque não há outro! – foi representado sem decorações nem passamanarias. Veja bem: O Verbo fez-se carne e os jornalistas daquele tempo nem deram conta!»
Georges Bernanos, Diário de um pároco de aldeia (1936)
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
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