Rasgo. O som da palavra ‘rasgo’ parece uma onomatopeia do próprio ato de rasgar. Rash… ressoa a violência do rasgo, violência que o rasgo encerra. Mas essa proximidade entre som e significado pode fazer-nos reduzir o sentido da palavra ‘rasgo’. Além da violência que encerra, o rasgo também é possibilidade. Por isso falamos de pessoas com rasgo, com visão e perspicácia. Violência. Possibilidade. Sempre tão próximas, sempre tão fáceis de confundir. É como o perfume na cabeça daquele que jejuou e não quer que o notem. Um perfume que é simultaneamente violência sobre o ego que gosta de autocomiseração e possibilidade de não viver encurvado sobre si mesmo.
Há algo semelhante na palavra ‘quaresma’. Não que o som seja uma onomatopeia do sentido. Mas parece haver uma certa ambivalência de sentido. O jejum, a abstinência, a compunção, rash… parecem ser apenas palavras de sabor violento. Mas como falar hoje destas práticas? Como falar delas sem as sublinhar tanto que caímos no voluntarismo dos convencidos, nem sublimar tanto que caímos no intelectualismo, na pseudo-mística? Estas visões unilaterais da ascese quaresmal, só se convertem em bem, em caminho de santidade, se a pusermos em diálogo com a outra dimensão da quaresma: a possibilidade! A possibilidade do rasgo…
Recordo aqui uma pequena história. Há uns anos atrás uma rapariga veio ter comigo no início da quaresma e perguntou-me cheia de entusiasmo: “Vou deixar de comer Oreo durante a quaresma. Tu o que é que vais deixar?” Por um lado esta pergunta fez-me bem. Não basta dizer que o sentido da quaresma é fazer-me livre quando, na prática, não estou disposto a exercitar essa liberdade nas pequenas coisas. Por outro lado levou-me a devolver-lhe outra pergunta: “Oreo? Porquê Oreo?” Ao que me respondeu: “Não sei, é quaresma, temos de abdicar de alguma coisa, não é?” – disse à espera da minha aprovação. Esta visão de quaresma continha um bom começo, mas podia ainda crescer em rasgo, em possibilidade, no sentido do para quê da quaresma. É isso que vamos aprofundar brevemente.
Os três rasgos da salvação
Ao considerar os tempos que a liturgia oferece cada ano, podemos reconhecer três rasgos. No advento rasgam-se os céus e chove-nos o redentor. Na quaresma, o profeta convida-nos a rasgar os nossos corações para acolher a piedade divina. Na páscoa, rasga-se o véu do templo e a salvação do messias de Israel é aberta a todos os povos. Tentando sintetizar estes três rasgos numa só linha, podemos afirmar que no primeiro rasgo abrem-se os céus, no segundo abrem-se os corações e no terceiro ambos se comunicam livre e intensamente: os céus e os corações.
Deste elenco de rasgos que possibilidades podemos recolher? Ao ver como os céus se rasgam percebemos que Deus não quer viver num conforto solitário, mas sai de si e caminha connosco! Só à luz deste amor primeiro, do Deus que vive em êxodo constante, podemos entender o segundo rasgo como uma resposta de amor e não como ato de masoquismo. É um desejo de correspondência por amor ao Amor. Neste sentido, no terceiro rasgo, pelo qual o véu do templo de Jerusalém se abre durante a páscoa de Cristo, podemos perceber como Deus olha com ternura para o nosso desejo sempre incompleto de lhe responder e oferece-se a todos e sem medidas nem cálculos.
Portanto, regressar anualmente à quaresma não é uma mera repetição de gestos penitenciais. Trata-se do empenho comunitário de colocar todos os meus esforços individuais de ser melhor dentro de um diálogo de amor. Um diálogo que me antecede, pois os céus já se rasgaram para nós, e que se prolongará numa alegria renovada, dom do ressuscitado “que me amou e se entregou por mim” (Gal 2, 20). Mas, como exercitar melhor esse rasgo?
Rasgo: reler o fenómeno e aprofundar o exercício
O rasgo, enquanto fenómeno, pode ser descrito desde três perspectivas: (1) rasgo o que estava hermeticamente fechado; (2) o rasgão permite ver o que estava oculto do lado de lá e; (3) o rasgão abre uma via de comunicação com o que está fora. De modo didático, estas perspectivas pode ser apresentadas como vias para entender melhor as três grandes práticas de ascese e possibilidade quaresmal: a oração, o jejum, a esmola.
Pela oração, tanto o nosso horário hermeticamente preenchido como os nossos desejos e pensamentos rasgam-se para se abrirem a uma nova fonte ou densidade. Mais ainda, “o grande risco do mundo actual, com sua múltipla e avassaladora oferta de consumo, é uma tristeza individualista que brota do coração comodista e mesquinho, da busca desordenada de prazeres superficiais, da consciência isolada. Quando a vida interior se fecha nos próprios interesses, deixa de haver espaço para os outros, já não entram os pobres, já não se ouve a voz de Deus, já não se goza da doce alegria do seu amor, nem fervilha o entusiasmo de fazer o bem. Este é um risco, certo e permanente, que correm também os crentes.” Poderíamos, portanto, “renovar hoje mesmo o seu encontro pessoal com Jesus Cristo ou, pelo menos, a tomar a decisão de se deixar encontrar por Ele, de O procurar dia a dia sem cessar.”
Pelo jejum podemos adquirir um conhecimento íntimo sobre o estado das nossas motivações quando amparadas pela ternura de Deus. Reconhecer para quanto somos, até onde nos leva o amor. Mais ainda, pelo jejum exercitamos “a firmeza interior, que é obra da graça, [e] impede de nos deixarmos arrastar pela violência que invade a vida social, porque a graça aplaca a vaidade e torna possível a mansidão do coração.”
Finalmente, pela esmola podemos aceder e comunicar com o que está fora de mim, daquele que deixei ou deixamos fora do nosso círculo de atenção. A esmola pode ser dada das formas mais clássicas e habituais, na doação de bens económicos a quem não os tem ou tem menos que nós. Mas também pode ser dado noutro tipo de bens que humanizam, como são o dom do tempo a quem não tem companhia, a quem não tem que lhe explique as matérias da escola ou não sabe preencher um papel para a segurança social ou simplesmente não tem com quem desabafar… Mais ainda, é muito nobre integrar na própria esmola as nossas acções diárias em prol do cuidado da nossa casa comum, “tais como evitar o uso de plástico e papel, reduzir o consumo de água, diferenciar o lixo, cozinhar apenas aquilo que razoavelmente se poderá comer, tratar com carinho os outros seres vivos, servir-se dos transportes públicos ou partilhar o mesmo veículo com várias pessoas, plantar árvores, apagar as luzes desnecessárias…”
Abre-se aqui o tempo das perguntas: a que estou disposto? Desejo entrar neste diálogo de rasgo e crescimento? Vejo em tudo isto apenas um rasgar violento da minha rotina e preocupações ou um rasgo de possibilidade de vida e alegria interior? Retrocesso para os dias dos nossos avós ou caminho possível para a Páscoa da Criação unida a Jesus?
1. Evangelii Gaudium, 1-2.
2. Gaudete et Exsultate, 116.
3. Laudato Si, 211.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.