No passado dia 10, o Papa Francisco aprovou o Motu próprio Spiritus Domini com o qual introduziu mais uma alteração no Código de Direito Canónico, eliminando a reserva aos leigos de sexo masculino na receção dos ministérios de leitor e acólito. Na versão original latina do texto legal (o cânone 230 §1), foi alterada – ou melhor, eliminada – uma única palavra. No entanto, parafraseando Neil Armstrong ao pisar o solo lunar, trata-se de uma pequena mudança na lei que traduz uma gigante alteração de mentalidade.
Comecemos pelo início: de que se trata quando falamos dos ministérios do leitorado e acolitado? A vida e a organização da Igreja têm sido marcadas, desde sempre, pelo aparecimento de “carismas” e “ministérios” inspirados pelo Espírito Santo e submetidos ao discernimento do Povo de Deus. Se a noção de “carisma” sublinha mais a novidade e espontaneidade da força do Espírito que impele a agir de um determinado modo (o exemplo mais claro é o dos fundadores de ordens, congregações ou movimentos), o conceito de “ministério” remete para a instituição, pressupondo um reconhecimento formal de uma determinada função por parte da comunidade, mediante um rito litúrgico de instituição.
Se é certo que o ministério com maior visibilidade é o que vem conferido com o sacramento da Ordem (diácono, presbítero ou bispo), a história e a tradição da Igreja contêm uma série de outros ministérios instituídos, que importa certamente valorizar para ultrapassar uma visão clerical da comunidade dos crentes. Durante longos séculos, aqueles que agora conhecemos como ministérios não clericais eram chamados “ordens menores” e constituíam exclusivamente etapas na preparação para o sacerdócio (na verdade, quem os recebia era, desde o início do percurso, considerado clérigo). No seguimento do Concilio Vaticano II, que propôs um modelo de Igreja menos piramidal, no qual todos os fiéis são chamados à santidade, expressão da igual dignidade de batizados, o Papa Paulo VI substituiu as antigas ordens menores pelos ministérios laicais do leitorado e acolitado. No entanto, por continuarem a ser (ainda que não exclusivamente) etapas na preparação para o sacerdócio, estes ministérios ficaram reservados aos fiéis de sexo masculino. Note-se que no elenco que o Código de direito canónico apresenta de «direitos e deveres dos fiéis leigos», esta constituía a única discriminação entre homens e mulheres. Com a alteração agora levada a cabo manifesta-se, portanto, a plena igualdade entre homens e mulheres no serviço laical da Igreja.
Na prática, a norma que reservava este ministérios aos fiéis de sexo masculino nunca impediu que de forma generalizada tanto homens como mulheres tenham exercido a função de leitores e (talvez menos generalizadamente) de acólitos nas nossas celebrações.
Na prática, a norma que reservava este ministérios aos fiéis de sexo masculino nunca impediu que de forma generalizada tanto homens como mulheres tenham exercido a função de leitores e (talvez menos generalizadamente) de acólitos nas nossas celebrações. Ao contrário do que alguma comunicação social tem reportado, a novidade não está em permitir oficialmente algo que já era comum (como se até aqui essa tivesse sido uma prática contrária à lei), mas sim na possibilidade de conferir o ministério, através de um rito litúrgico presidido pelo bispo, dando assim uma maior visibilidade e estabilidade às funções de proclamar a Palavra de Deus e servir o altar na celebração eucarística. Na verdade, a reserva até aqui existente tornava muito difícil que fosse valorizado o ministério instituído, acabando este por ficar reservado, na prática, para os candidatos ao sacerdócio.
A alteração agora introduzida realiza, portanto, de forma mais perfeita aquilo que a reforma pós-conciliar de Paulo VI prometera, abrindo as portas a uma “pastoral dos ministérios” que valorize o papel de leitores e acólitos (homens e mulheres) enquanto ministros leigos, movidos pelo Espírito e responsabilizados diante da comunidade. Não por acaso o Motu próprio do Papa tem data de 10 de janeiro, festa do batismo do Senhor, pois a valorização dos ministérios laicais remete para a centralidade do sacerdócio comum de todos os fiéis, recebido no batismo. Numa carta ao Prefeito da Congregação para a doutrina da fé que acompanha o decreto, o Papa sublinha este aspeto, insistindo para que o ministério de leitor e acólito, mesmo quando conferido a candidatos ao sacerdócio, seja vivido neste espírito de sacerdócio batismal e, portanto, laical.
Tenho esperança de que a abertura do leitorado e acolitado a todos os fiéis seja uma oportunidade para a valorização destes ministérios nas comunidades locais, convidando os bispos a multiplicar as instituições. Não sendo estritamente necessária para o exercício das funções de leitor e acólito, a instituição através de rito litúrgico pode ser um sinal da centralidade do papel dos leigos na animação da Igreja local, ocasião para juntar a comunidade em torno da celebração do sacerdócio comum dos fiéis. Como recorda o Papa na mesma carta, «uma melhor configuração destes ministérios e uma referência mais precisa à responsabilidade que nasce, para cada cristão, do Batismo e da Confirmação, pode ajudar a Igreja a redescobrir o sentido de comunhão que a carateriza e a iniciar um renovado compromisso na catequese e na celebração da fé».
A (re)descoberta do ministério instituído de leitor e acólito poderá, assim, tornar-se instrumento da transformação da comunidade eclesial no sentido de uma «Igreja em saída», tal como apela o Papa Francisco desde o início do seu pontificado. A partir da valorização dos ministérios de leitor e acólito poder-se-á também identificar, valorizar ou mesmo experimentar novos ministérios (laicais) na Igreja, criando uma «cultura da ministerialidade» que ajude a cumprir o sonho conciliar da Igreja como comunhão, na igual dignidade de todos os batizados e com a valorização do serviço de todos.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.