Um retiro para “aprender a olhar com Inácio”: da visibilidade à luminosidade

Um retiro online no qual seremos desafiados, com propostas de oração e partilha, a aprofundar com Inácio o nosso caminho de conversão a Cristo e que terá lugar nos próximos sábados 9, 16, 23 e 30 de julho.

Um retiro online no qual seremos desafiados, com propostas de oração e partilha, a aprofundar com Inácio o nosso caminho de conversão a Cristo e que terá lugar nos próximos sábados 9, 16, 23 e 30 de julho.

“Uma voz é mais bonita quando está cheia de outras vozes”, referiu Jean Louis Chretièn. Há vozes do passado e do presente que, conscientemente ou não, modulam a nossa linguagem, o nosso pensamento. Poderá dizer-se o mesmo do nosso olhar? Há olhares que ficam gravados no mais profundo do nosso ser, registados como memórias de benção ou maldição. Recordemos, a título de exemplo, o olhar de Cristo no ‘chamamento de Mateus’ de Caravaggio, ou o da Mona Lisa ou o da menina afegã Sharbat Gula.

A conversão do olhar de Inácio traduz um caminho espiritual que nos pode servir de companhia, fonte ou casa. O jovem basco, de olhar ambicioso, por causa do caminho que o seu ferimento iniciou, foi realizando uma profunda transformação do seu olhar; e em tal conjuntura que, durante os últimos anos da sua vida, quem com ele vivia pôde dizer a respeito do seu olhar: “Quando queria agasalhar alguém, manifestava-lhe uma alegria tão grande, que parecia colocar a pessoa inteiramente dentro da sua alma. Tinha, por natureza, uns olhos muito alegres”. (Luis Gonçalves da Câmara, Memorial nº 86) Só a experiência afetiva do olhar de Deus sobre si pode ajudar-nos a compreender tamanha transformação. Na verdade, o seu olhar ficou mais belo por estar cheio de um outro olhar.

No mês em que encerramos o Ano Inaciano, o Ponto SJ e o Ano Inaciano pretendem oferecer um retiro que nos desafie a aprendermos a ver, com Inácio, novas todas as coisas em Cristo. Deste modo, durante quatro sábados (9, 16, 23 e 30 de julho), seremos desafiados, com propostas de oração e partilha, a aprofundar com Inácio o nosso caminho de conversão a Cristo.

Para nos ajudar a empreender este caminho, pode ser importante responder a algumas questões que nos ajudem a confiar-nos ao pequeno caminho de Inácio com grande ânimo e generosidade: (1) porque precisamos de um retiro para rezar a conversão do olhar?; (2) que nos diz a vida de Inácio sobre a urgência da conversão do olhar?, (3) que pode este retiro oferecer ao nosso tempo?

Certamente que, no meio do nosso dia a dia, nem sempre será fácil encontrar oportunidades para um afastamento tão total dos nossos trabalhos e responsabilidades.

Porque precisamos de um retiro para rezar a conversão do olhar?

Sempre gostei da frase limpa do Almada Negreiros, no Nome de Guerra: “fazer-se anónimo é uma condição para ser contemplativo”. Esta experiência não seria estranha a Inácio. Depois do seu ferimento em Pamplona, Inácio foi forçado a um retiro de convalescença. Afastado da sua vida passada, imóvel e de volta ao solar da infância, Inácio começou a dar-se conta, na experiência da alegria interior, que a sua solidão era habitada.

Quando, recuperado o andar, se pôs a caminho de Jerusalém, o peregrino apropriou-se desta sabedoria, retirando-se para se concentrar no novo hóspede do seu coração. Escreve-se, portanto, no nº 18 da Autobiografia: “Ao amanhecer, o peregrino partiu para não ser conhecido, e foi-se, não pelo caminho direto, a Barcelona, onde encontraria muitos que o conheciam e honravam, mas desviou-se para uma povoação chamada Manresa”. Destas experiências brotará certamente a nota de Inácio quando, nos Exercícios Espirituais, refere que desta separação podemos: (1) afastar-nos do que está mais desordenado para nos centrarmos no serviço e louvor de Deus; (2) estar mais centrados, tendo o coração repartido por menos coisas; (3) estar mais disposto para me aproximar e unir a Deus.

Certamente que, no meio do nosso dia a dia, nem sempre será fácil encontrar oportunidades para um afastamento tão total dos nossos trabalhos e responsabilidades. Porém, conhecer a finalidade positiva deste afastamento, a união mais fácil e centrada em Deus, poderá seguramente ajudar-nos a determinar com mais critério e realismo os momentos de oração que mais nos ajudarão a aproximarmo-nos desse fim.

É em Manresa que Inácio aprende a passar da visibilidade à luminosidade. Não se trata do aluguer de uns outros olhos ou de uma outra realidade, mas de aprender a ver as mesmas coisas mas com um olhar transformado

Que nos diz a vida de Inácio sobre a urgência da conversão do olhar?

Chegado a Manresa, Inácio afirma-se como um peregrino sem “conhecimento nenhum de coisas interiores e espirituais”. E o facto de peregrinar pelos caminhos novos do Espírito levou-o a enfrentar-se com uma série de vicissitudes não previstas pelo seu GPS interior — generoso, bem intencionado mas ainda marcadamente mundano. Como nos recorda o jesuíta catalão Carles Marcet:

Em Manresa, certamente que Inácio se afastou das gentes, lugares, meios e geografias de antes. Mas da honra?! Na sua gruta de Manresa, embora procure aproximar-se do Senhor, pervive ainda nele a busca da própria honra, da glória de ser assinalado e destacado no serviço do seu novo Senhor. Pensando o estilo de vida de Inácio com uma terminologia compreensível, podemos dizer que o peregrino busca visibilidade mais do que luminosidade. O desejo de visibilidade é algo ainda auto referencial, o centro está ainda naquele que se quer fazer visível; porém, no desejo de luminosidade, a pessoa descentra-se para que seja a luminosidade divina aquela que se manifesta através de nós.

É em Manresa que Inácio aprende a passar da visibilidade à luminosidade. Não se trata do aluguer de uns outros olhos ou de uma outra realidade, mas de aprender a ver as mesmas coisas mas com um olhar transformado. Que transformação é esta? Trata-se de um caminho de descentramento, de êxodo em relação ao próprio amor, querer e interesse; deixar de ser auto referencial para passar a buscar no olhar de Deus a fonte do seu próprio modo de olhar. Deste modo, além do afastamento geográfico, Inácio percebe que o seu caminho interior só será completo se abrir vias de auto transcendência. Um convite a olhar a interioridade não como o reino de um monólogo de cuidados individuais, mas como catedral onde a luz é coada pelo olhar de um Outro que me habita e me busca dentro de mim, aspirando pela possibilidade de olhar o meu olhar. Daí que, nos EEs, Inácio de Loiola nos convide a reservar um tempo breve no início de cada oração a considerar o modo como Deus me olha, correspondendo-lhe com um olhar de reverência.

É na descoberta desse outro olhar que me atravessa que nos tornamos peregrinos, também no olhar. O nosso foco deixa de ser a visibilidade, a procura de ser o cristão que dá bom exemplo, para passar a ser viver na irradiação de Deus, dando testemunho dessa procura constante. Como referia o Santo Padre, na carta dirigida aos peregrinos a Fátima no passado dia 12 de março, “nem turismo nem labirinto…, mas caminho em direção a alguém que me chama, um caminho que supõe deixar algo e olhar adiante, em direção a algo a que sou chamado e não vejo completamente”. É acolhendo o desafio a deixarmo-nos contagiar pelo olhar aceso de Deus sobre nós que nos tornaremos peregrinos, porque cheios de força e de destino — como dizia Sophia de Mello Breyner acerca do ‘Vidente’.

O caminho de Inácio pode ser verdadeiramente iluminador para todos nós. Ao sentir-se olhado no seu modo de olhar, Inácio muda o seu modo de rezar, centrando-o no conhecimento da intimidade de Cristo durante o Seu ministério.

Que pode este retiro oferecer ao nosso tempo?

O caminho de Inácio pode ser verdadeiramente iluminador para todos nós. Ao sentir-se olhado no seu modo de olhar, Inácio muda o seu modo de rezar, centrando-o no conhecimento da intimidade de Cristo durante o Seu ministério. Ao pôr os olhos nos sentimentos do coração de um Cristo em ação, Inácio sente que o seu olhar vai sendo devolvido ao mundo. Daí que o jesuíta Josep Maria Rambla afirme que, em Manresa, se produz no coração de Inácio uma conversão a Deus mas também ao mundo recebido desde Deus. Porque o mundo passa a ser percebido e compreendido, afetiva e intelectualmente, como meio divino.

Num mundo marcado pela polarização, que poderá oferecer-nos este retiro? As polarizações podem ser vistas desde várias perspetivas. Uma possibilidade será lê-las em função do tempo; posto em pergunta: que fração do tempo absolutizam as diversas frentes de polarização? Nas últimas décadas, as crescentes polarizações parecem dividir-se entre os que canonizam o passado e os que absolutizam o presente. Ora reclamando um passado no qual as coisas eram como deviam de ser, ora apontando um presente histórico como juiz do que deve ser tido como herança relevante ou irrelevante. Que fazer?

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Ilustração de Ignasi Flores

A beleza cristã, altamente concretizada na visão espiritual de S. Inácio, é a de congregar constantemente as nossas forças espirituais e humanas em função de um futuro, de uma finalidade sempre maior, diante da qual tanto passado como presente deixam de ser categorias rígidas mas disponíveis, idealizações visíveis mas possibilidades luminosas. A pergunta deixa de ser, portanto, a que nos obriga o ontem ou a que atualização nos força o hoje, para passar a ser: aonde nos atrai o olhar de Deus, sabendo que somos pessoas com história? É neste sentido que o presente retiro nos pretende levar: a considerar o que somos à luz de um chamamento, de uma atração que nos leve mais além do quinhão de terra que pisamos e dos rios cársicos onde podemos sentir a nossa história pessoal, familiar ou social. Possamos, em confiança no Espírito de Cristo, sentir-nos impulsionados por um Outro olhar que nos mova a olhar com largueza divina as realidades humanas, investindo-nos sempre para diante (Cf. Fil 3, 13-14).

Fotografia de Jean-Baptiste D. – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.