Sapatos gastos. Foi uma das últimas imagens de Francisco que ficará gravada na história. Um pequeno detalhe, impercetível à distância, revelado pela proximidade das câmaras. E é precisamente neste pormenor que importa deter o olhar. Estamos diante do pastor de uma “Igreja acidentada, ferida e enlameada” que caminhou com o seu povo, sem medo do pó ou do cansaço.
O rogito depositado no seu caixão – o documento oficial que recapitula solenemente a vida do Pontífice – é de uma beleza inesperada: «Era um pastor simples e muito amado na sua arquidiocese, que se deslocava para todo o lado, mesmo de metro e autocarro. Vivia num apartamento e preparava o seu próprio jantar, porque se sentia como uma pessoa do povo.»
A Igreja sempre soube da força dos símbolos. Mas, desta vez, os sapatos não são apenas metáfora: são a tradução crua de um pontificado. Caminharam pela terra de Lampedusa, onde tantos procuram vida e encontram morte; tocaram fronteiras, ergueram pontes onde outros queriam levantar muros. Entraram em hospitais, campos de refugiados e prisões, para lavar, pela primeira vez, os pés de doze mulheres – numa inversão radical do gesto da pecadora que procurava perdão (Lc 7,36-50).
Atravessaram, em solidão, a praça de São Pedro durante o tempo sombrio da pandemia, levando esperança onde reinava o medo. Aproximaram Igrejas cristãs, sobretudo através da amizade com Bartolomeu I, e fizeram renascer o sonho de uma celebração comum da Páscoa. Em tantas outras periferias geográficas e existenciais, estes sapatos transportaram as dores, as histórias e os sonhos de muitos.
Como pode algo tão simples transmitir uma mensagem tão poderosa?
Creio que as pessoas intuem, com clareza instintiva, quando estão diante da autenticidade. Francisco, mesmo se acarinhado pelos meios de comunicação, não foi um produto mediático. O seu tom, os seus gestos, os seus valores eram genuínos. Como quando, após ser eleito Papa, regressou ao hotel para pagar a sua conta; ou ainda quando pediu a um benfeitor que ajudasse a custear o seu funeral. Terminou o seu pontificado do mesmo modo como o iniciou: não quis ser um fardo para ninguém.
Francisco soube ensinar-nos que elegância não é ostentação e que dignidade não é fausto. A sua simplicidade, longe de ser um acaso, foi uma decisão espiritual profunda, ecoando o ensinamento de Jesus: «não leves duas túnicas, nem sandálias nem cajado» (cf. Mc 10,10). Não leves nada que te impeça de estar com as pessoas e de partir em missão.
Francisco soube ensinar-nos que elegância não é ostentação e que dignidade não é fausto. A sua simplicidade, longe de ser um acaso, foi uma decisão espiritual profunda, ecoando o ensinamento de Jesus: «não leves duas túnicas, nem sandálias nem cajado» (cf. Mc 10,10). Não leves nada que te impeça de estar com as pessoas e de partir em missão.
A sua sobriedade não deve ser confundida com falta de profundidade intelectual. Esta foi uma narrativa maliciosa que alguns ensaiaram.
Bergoglio coordenou a Comissão de redação do Documento de Aparecida, foi o espírito propulsor de encíclicas como Laudato Si’ e Fratelli Tutti, e de exortações apostólicas como a Amoris Laetitia, que moldaram não apenas a agenda eclesial, mas também o debate público global. Introduziu novos conceitos — primeirear, Igreja em saída, periferias existenciais, sinodalização — que se transformaram em programas de ação.
Mostrou também uma inteligência prática ao empreender a reforma da Cúria Romana, ao combater com firmeza os abusos sexuais, ao promover a transparência financeira e ao redesenhar as estruturas de governo da Igreja, num esforço constante para tornar o Evangelho mais visível na carne da história.
E agora, o que nos reserva o futuro?
A resposta mais honesta é que, neste momento, só o Espírito o sabe. Contudo, cabe-nos a responsabilidade de discernir, com lucidez e coragem, o que se joga neste tempo de travessia.
A grande questão é saber se as mudanças iniciadas por Francisco foram apenas o reflexo do seu carisma pessoal ou se geraram raízes na cultura da Igreja. O perfil dos futuros bispos, a instauração de uma cultura de transparência e prestação de contas, o método do diálogo, não podem ficar reféns da memória de um pontificado: precisam de consolidar-se em estruturas estáveis.
É preciso passar da intuição à institucionalização. A sinodalidade, entendida não como mera consulta, mas como estilo de vida e de governo, terá de ser assumida de forma mais plena. A valorização dos ministérios laicais, a promoção real da mulher na vida eclesial, o aprofundamento do diálogo ecuménico e inter-religioso são passos que não podem ser adiados.
Francisco abriu portas e indicou o caminho. A nós, Igreja peregrina, cabe continuar a sua marcha, não como guardiões da nostalgia, mas como construtores da esperança que se predispõem a calçar os seus sapatos.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.