Um grito chamado Isaías

Em Isaías há gritos de fúria, como há gritos de júbilo; há gritos de sofrimento, e há gritos de resgate. Este álbum conta-nos a sua história, como um eco inesperado e familiar, ao mesmo tempo.

Em Isaías há gritos de fúria, como há gritos de júbilo; há gritos de sofrimento, e há gritos de resgate. Este álbum conta-nos a sua história, como um eco inesperado e familiar, ao mesmo tempo.

Ouvi alguém dizer algures, com graça, que “sabemos que fomos conquistados pelo prazer de ler no momento em que deixamos de recitar palavras e damos por nós a ver acontecimentos” (francamente, não sei onde ouvi isto). Para alguns de nós, esta frase já se tornou uma realidade: já descobrimos que é possível ver, ouvir, cheirar, saborear e tocar o mundo discreto de um livro. Mas, para muitos outros, isso ainda não aconteceu.

Em parte, a “culpa” é dos próprios livros: não se mostram assim logo à primeira, escondem-se atrás das páginas e testam o leitor para saber se ele está pronto para receber a sua história. Mas, em parte, talvez seja por falta de anfitriões, de pessoas que saibam abrir as portas dos livros para que os recém-chegados descubram que, por detrás daquela fachada a preto e branco, há todo um espaço cheio de vida. Faltam contadores de histórias.

Ora, uma coisa é escrever boas histórias. Outra, bem diferente, é saber contá-las. Uma coisa é imaginar uma personagem e esculpi-la por dentro e por fora com sentimentos e gestos, dar-lhe sonhos, colocá-la diante de perigos, e contar tudo isso em parágrafos. Outra, bem diferente, é torná-la visível para os ouvintes, e trazê-la para o lado de cá das coisas e do tempo.

Podemos dizer que, se a Bíblia chegou até nós, (também) foi porque conseguiu encontrar bons escritores, por um lado, e bons contadores de histórias, por outro. Algumas das suas páginas mereciam ser emolduradas como tesouros preciosos, tanto para crentes como para não crentes. Epopeias e lendas, poemas e canções, cartas e discursos, meditações e lamentos: ali encontramos retratos para muitos dos nossos estados de alma (inclusive os piores). Nas famílias judaicas, as aventuras de Noé, José, Moisés, Jonas, Rute e tantos outros eram contadas pelas avós, em casa. Os miúdos sentavam-se à sua volta, à noite, à espera de ouvir “coisas de antigamente”, do tempo em que os animais falavam – e precisavam de arcas enormes para resistir à chuva – e elas realizavam a “magia” de tornar vivos os relatos.

Os textos da escola de Isaías estão entre os mais ousados da Bíblia. Umas vezes críticos ferozes da situação social e política da nação, outras, das instituições religiosas; em certas alturas, profundamente poéticos e humanos, próximos dos nossos sonhos, sofrimentos e esperanças mais profundos; e, nalguns versos, com intuições místicas: ao longo de largos anos, os escritores desta escola souberam contar a vida espiritual dos seus contemporâneos. Mas, possivelmente, a sua maior ousadia esteve em tentar contar a vida íntima de Deus. Poucos são os textos bíblicos que nos põem diante de Deus, na primeira pessoa, com tanta transparência. Mas, lá está: são textos antigos, e não é fácil encontrar quem nos sirva de anfitrião para entrarmos nessas paisagens.

A sugestão de que o Duarte (P. Duarte Rosado, sj) é como uma avó é cómica a vários títulos. E, no entanto, ele partilha com elas a mesma capacidade de nos apresentar a vida interna das palavras. As suas músicas (no CD que será lançado amanhã, sexta-feira) deixam-nos ouvir Isaías com uma frescura renovada. Como?

Musicalmente, o álbum está próximo da sonoridade de muitos artistas indie (é difícil não pensar em Bon Iver, José González, Fleet Foxes ou Gregory Alan Isakov): umas vezes é íntimo, para deixar ouvir a guitarra, a voz e a respiração. Outras, parece ser uma festa de aldeia, com aplausos à volta de uma fogueira imaginária. E há momentos em que nos sentimos como células de uma enorme multidão.

Depois, temos a força surpreendente do próprio texto de Isaías. De repente, a prosa poética de há 2300 anos parece de hoje. Torna-se possível imaginar o suspiro de quem se preocupa, ou o grito de quem vê os seus sofrer, ou a promessa de um pai esfolado a aplainar as arestas do mundo para que os filhos possam aprender a andar sem cair, ou o murmúrio de um apaixonado que tatua o nome da amada na palma do coração.

Nem sempre é fácil testemunhar um grito. Em Isaías há gritos de fúria, como há gritos de júbilo; há gritos de sofrimento, e há gritos de resgate. Este álbum conta-nos a sua história, como um eco inesperado e familiar, ao mesmo tempo.

Um grito chamado Isaías” – Duarte Rosado, sj
Livraria Apostolado da Oração
Desenhos de Margarida Alvim, Tita Jardim, Teresa Dias Costa, Mário Linhares, Carmo Pupo Correia, João Sarmento e Nuno Branco.
Encomende aqui.

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.