Um golpe de sorte – estamos entregues ao acaso?

Em Coup de chance, em vez de se dizer explicitamente que a vida é horrível, efémera e brevíssima, revela-se mais o encanto por ter vindo ao mundo, ainda que seja cruel, injusto e desprovido de sentido.

Em Coup de chance, em vez de se dizer explicitamente que a vida é horrível, efémera e brevíssima, revela-se mais o encanto por ter vindo ao mundo, ainda que seja cruel, injusto e desprovido de sentido.

Depois de Rifkin’s Festival (2022), Woody Allen regressa ao thriller criminal. Sem sair completamente do género romântico, Coup de chance (2023) deixa-nos uma narrativa bem construída que apresenta o habitual niilismo do escritor norte-americano. Ou talvez não. Talvez se encontre aqui um pouco mais de esperança em relação às produções do mesmo género que o cineasta nos tem apresentado.

Sabemos que ele não se sente confortável com a ideia de, um dia, vir a morrer. E gosta de o dizer aos quatro ventos. Quem ler a sua autobiografia, cujo título é A propósito de nada, ficará a saber que a terrífica descoberta da sua condição mortal o perturba desde os cinco anos de idade. Entristeceu-se na altura e continua a lamentar o facto de termos todos de morrer daqui a uns tempos. Não gosta que lhe digam para viver sempre ao máximo, como se cada dia fosse o último, pois: «Atenção! Um dia destes ainda acertamos…». Quando lhe perguntam o que pensa em relação à morte, a única coisa que lhe ocorre dizer é: «sou totalmente contra».

Talvez seja por isso que continua a produzir hoje arte como se ainda um jovem fosse. Com efeito, depois de completados 87 anos de idade, apresenta-nos uma narrativa que fala mais de vida do que de morte. Torna-se, assim, possível encontrar mais esperança neste filme do que nos outros thrillers de Woody Allen: sobretudo quando o comparamos a Crimes and Misdemeanors (1989), a Match Point (2005), a Cassandra’s Dream (2007) e até mesmo aos filmes cujos enredos deixam o vilão de certa forma punido, tais como Scoop (2006) e Irrational Man (2015).

Bem sei que, em Coup de chance, o seu niilismo permanece. Ao explorar o mistério do destino, ou mais precisamente do acaso que ecoa na série de sucessos e fracassos que vão moldando a história das nossas vidas, o filme não deixa de nos mostrar um mundo cruel. No universo de Woody Allen, parece que todos acabamos por ser vencedores ou vencidos na realização da nossa vontade, dos nossos desejos. E, pior ainda, esta inescapável dicotomia da vida desvanece-se completamente, assim que morrermos para sempre…

No universo de Woody Allen, parece que todos acabamos por ser vencedores ou vencidos na realização da nossa vontade, dos nossos desejos. E, pior ainda, esta inescapável dicotomia da vida desvanece-se completamente, assim que morrermos para sempre…

Coup de chance revela, no entanto, o maravilhar-se pela vida. Já não nos confronta com as piadas pessimistas de Annie Hall, por exemplo – lembram-se da comparação que Woody Allen ali faz da vida com a anedota das duas velhotas que, depois de almoçarem num restaurante, dizem uma para a outra: – «a comida aqui custa tanto e é horrível»; – «pois, e as porções, muito pequenas»? –. Em Coup de chance, em vez de se dizer explicitamente que a vida é horrível, efémera e brevíssima, revela-se mais o encanto por ter vindo ao mundo, ainda que seja cruel, injusto e desprovido de sentido. Fala-se agora do «milagre» de termos nascido e de podermos participar com toda a intensidade na experiência de viver. Trata-se de um «milagre» que supera todas as probabilidades de virmos, um dia, a ganhar na lotaria. Nós já ganhámos muito mais do que todas as lotarias nas quais uma vida pode jogar!

Certo, é claro que esse sentimento de espanto e gratidão pode desfazer-se facilmente quando se assume que tudo se reduz a uma questão de sorte ou azar: pior ainda, quando tudo se resume à sorte de uns e ao consequente azar dos outros. Mas é precisamente aí que a narrativa de Woody Allen nos surpreende. Pouco importa que agora seja em francês. Ao assumir uma certa ‘providência do acaso’, acaba por desfazer a perspetiva que nos separa entre vencedores e vencidos, entre fortes e fracos. É só uma questão de saber quem são os últimos e os primeiros, sem mérito algum da sua parte, sem destino, sem sentido. – poderíamos dizer por pura graça?

Nesta trágico-comédia da vida, a providência do acaso aparece desde o início até ao fim. Casada com um homem de sucesso, Fanny encontra, por mero acaso, um antigo colega de liceu enquanto passeia pelas ruas de Paris num intervalo de almoço. Ele entusiasma-se com aquela casualidade. E diz-lhe, com o coração aos saltos, que Fanny – belíssima no seu sorriso! – fora o primeiro amor da sua vida: diz que sentiu por ela uma paixão tão forte que lhe é impossível esquecê-la. Nunca tiveram nada um com o outro. Ela nunca suspeitou que ele estivesse minimamente apaixonado. Passaram-se anos sem se verem. E agora, após aquele encontro casual, veem o curso das suas histórias para sempre transformado.

Fanny não o consegue tirar da cabeça, ao mesmo tempo que se intensifica o vazio da vida que vai levando com o marido. Homem bem-sucedido, sempre disponível para gastar rios de dinheiro com ela, Jean interessa-se pelo mecanismo dos comboios elétricos. O seu casamento resume-se a gastar fortunas em prendas extravagantes, a caçar, a ir a jantares pomposos e a passar o tempo em encontros sociais com pessoas que, a Fanny, nada lhe dizem. Ela encontra-se numa situação confortável. Certo. Mas isso não lhe basta. Sente-se amada pelo colega de liceu, enquanto parece ser um troféu para o marido que a conquistou. Jean é, de facto, um conquistador que não acredita em coincidências. Planeia tudo. Pois, para ele, a sorte constrói-se a partir das próprias forças, da própria inteligência. E é assim que vive, sem escrúpulos e sem arrependimento, eliminando todas as barreiras que possam obstaculizar o seu sucesso.

A ironia aparecerá em todo o seu esplendor, quando o próprio Jean se tornar numa das muitas vítimas do acaso. Para seu infortúnio, e para sorte alheia, acabará por ser ele o último; ou, se preferirem, o primeiro a cair. A providência do acaso nunca perdoa. Ela emerge assim como governante supremo das nossas vidas, desafiando a noção de controle humano sobre o destino.

O niilismo de Woody Allen manifesta-se, então, nas suas duas facetas. Por um lado, a crueldade da ausência de propósito entrelaça-se com a efemeridade de uma existência destinada a findar. É triste, não só porque a nossa vida irá acabar um dia, mas sobretudo porque estamos agora emaranhados numa teia de relações permeadas pela busca incessante de interesses próprios: queremos ser amados quando é fácil que, no fundo, só estejamos a ser instrumentalizados.

Contudo, por outro lado, Woody Allen mostra-nos a outra face da moeda. A providência do acaso diz-nos que já ganhámos algo em vir ao mundo. Mesmo que não haja mais nada para além disto, já fazemos parte da experiência. Não se trata de apostar em nada, pois antes de qualquer decisão já ganhámos a lotaria, qual «milagre», de termos nascido contra a expectativa calculista de todas as probabilidades. Teremos sempre o som do jazz e algumas paixões. É certo que isso não basta para sairmos e superarmos o niilismo que nada aceita para além deste mundo, contingente e finito. Mas ao qualificar de «milagre» a nossa existência, Woody Allen deixa-nos maravilhados diante do prodígio de estarmos aqui, bem vivos. Antes de sermos um ser destinado a morrer, somos uma pessoa que floresce a partir de uma vida que lhe foi ‘dada’. Partindo do espanto de termos sido lançados neste mundo, podemos apreciar os eventos da nossa vida como algo que não é inteiramente moldado pela nossa própria vontade. Só consigo maravilhar-me com eventos que não construo pelas faculdades da minha pessoa. Por transcender o que está ao alcance do meu poder, a imprevisibilidade do acaso permite-me saborear as coisas doutra forma, mais intensamente. Talvez um pouco a partir da lógica da gratidão, da graça.

Contudo, por outro lado, Woody Allen mostra-nos a outra face da moeda. A providência do acaso diz-nos que já ganhámos algo em vir ao mundo. Mesmo que não haja mais nada para além disto, já fazemos parte da experiência. Não se trata de apostar em nada, pois antes de qualquer decisão já ganhámos a lotaria, qual «milagre», de termos nascido contra a expectativa calculista de todas as probabilidades.

E é aqui que eu, como crente num Deus transcendente e na vida eterna, posso aprender algo com o niilismo de Woody Allen. Dar muito rapidamente um sentido à vida, um sentido que eu compreendo cabalmente, pode levar-me a uma atitude de controlo total sobre o meu destino. Quanto mais conhecer do meu destino, menos serei capaz de admirar com espanto na minha vida. Quanto mais puder prever a cada instante, mais difícil me será gostar de cada momento, como uma graça. Não é por acaso que Sísifo só pode refugiar-se na arte de embelezar a sua pedra e de saborear as paisagens que vai contemplando ao longo da escalada. Talvez Nietzsche tenha mesmo razão ao afirmar que «sem música, a vida seria um erro». E a arte de Woody Allen funciona, para ele e para nós, desse modo: despoja-nos da ilusão de um sentido predefinido, enquanto preenche um pouco o vazio que, quiçá, vamos experimentando ao longo das nossas vidas.

Mesmo discordando da sua perspetiva niilista, vejo como o ‘acaso’ que se manifesta nas suas narrativas me incita a contemplar a beleza inerente ao caos (aparente). Agradeço-lhe por isso. E maravilho-me pela vitalidade de um homem que, quase aos 90 anos de idade, continua a querer viver com a arte do seu cinema. (Isto é o que tenho a dizer de Woody Allen enquanto artista.)

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.