Um caminho estreito

Quando leio e oiço tantas palavras e sentires sobre a fome e a sede de comungar, incapaz de ser saciada pela comunhão espiritual, só me consigo lembrar da minha amiga (recasada), e de tantos, mas tantos, que assim vivem há muitos anos.

Quando leio e oiço tantas palavras e sentires sobre a fome e a sede de comungar, incapaz de ser saciada pela comunhão espiritual, só me consigo lembrar da minha amiga (recasada), e de tantos, mas tantos, que assim vivem há muitos anos.

Aquilo que nos parecia algo distante, olhado com uma preocupação quase descuidada, tornou-se próximo, esvaziou cidades, encheu-nos de alertas, fechou-nos em casa. O número de mortos, vítimas de guerras e calamidades dito de forma profissional em tantos noticiários, durante anos a fio, foi suplantado de forma dramática e tornou-se notícia primeira de todas as horas, em todas as línguas.

O mundo parou. E se, para milhões de pessoas, foi apenas uma outra forma de viver a miséria, para muitos outros, a palavra confinamento, traduziu-se em teletrabalho, telescola, música nas varandas, tempo para ler, cuidar da casa, conhecer inúmeras possibilidades de fazer pontes, promover encontros.

Talvez uma das experiências mais extraordinárias, porque fora de toda a normalidade, foi a multiplicação de transmissões religiosas, desde a transmissão da Eucaristia em igrejas e capelas, até à Missa de Santa Marta, celebrada pelo Papa Francisco. Desde a partilha de noites de oração, a terços rezados em grupos de amigos. Desde propostas de peregrinações virtuais até à realização de encontros de catequese.

Esta riqueza de vida espiritual, tão capaz de conquistar novas searas, é algo que merece ser olhado com tempo, até com ternura. Porque na imensa maioria, foram decisões e gestos de pura gratuidade, assente na necessidade permanente de anunciar o Reino de Deus no meio dos homens. E neste ser olhado com tempo e com ternura, julgo que merecem particular reflexão duas palavras repetidas quase diariamente, nestas longas semanas: comunhão espiritual. Todos fomos convidados a conhecer uma realidade que não é nova.

Na verdade, bastaram dois dias para eu receber uma mensagem, escrita por uma velha amiga: «Já viste que agora todos estamos no mesmo barco?» Perante a sua situação de mãe e mulher recasada, foram inúmeras as conversas que tivemos. Discutimos e chorámos juntas. Uma procurava as palavras para tentar descrever a força e a beleza da comunhão espiritual; a outra procurava as palavras para explicar o vazio, a sensação de perda, a saudade que sentia de comungar.

Se este tempo for capaz de nos virar do avesso, de nos interrogar sobre nós próprios e sobre os outros, apesar de tudo, valeu a pena. Não estão em causa mudanças radicais. O que está em causa é a compaixão, a atenção ao outro, a sobriedade que nos deve calar palavras e reclamações.

Quando leio e oiço tantas palavras, tantos sentires sobre a fome e a sede de comungar, incapaz de ser saciada pela comunhão espiritual, só me consigo lembrar da minha amiga, e de tantos, mas tantos, que assim vivem há muitos, muitos anos e assim olham para o tempo que há-de chegar. E sinto vergonha pela nossa abundância, incapaz de oferecer estas poucas semanas de comunhão espiritual por todos os que não podem comungar; pela nossa reivindicação assente na legitimidade da vivência da Fé, mas incapaz de se compadecer pela vivência da mesma Fé, assente numa ausência imposta.

Se este tempo for capaz de nos virar do avesso, de nos interrogar sobre nós próprios e sobre os outros, apesar de tudo, valeu a pena. Não estão em causa mudanças radicais. O que está em causa é a compaixão, a atenção ao outro, a sobriedade que nos deve calar palavras e reclamações. Oferecer o que nos faz sofrer, por quem sofre mais do que nós. Estou convicta de que, também por aqui, passa o caminho estreito que Jesus nos deixou

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.