Um caminho de diálogo

A propósito do documento da Congregação para a Educação Católica do Vaticano sobre a teoria de género, duas psicólogas e um padre juntaram-se para reflectir, procurando clarificar conceitos com vista a favorecer o diálogo.

A propósito do documento da Congregação para a Educação Católica do Vaticano sobre a teoria de género, duas psicólogas e um padre juntaram-se para reflectir, procurando clarificar conceitos com vista a favorecer o diálogo.

No início da semana passada, a Congregação para a Educação Católica do Vaticano publicou um documento intitulado: Ele criou-os homem e mulher: para um caminho de diálogo sobre a teoria de género na educação, dirigido a “pais, estudantes, educadores, bispos, padres, religiosos, movimentos eclesiais, associações laicais e outros grupos” (6). Depois da introdução, o documento estrutura-se em três partes: (i) escutar, onde se expõem os pontos em que se pode concordar e a crítica à teoria de género; (ii) os argumentos em causa; e (iii) a proposta católica a propósito.

Com isto, a Igreja pretende dar considerações sobre a teoria de género a todos os educadores católicos (24). Desde o próprio título, a Congregação reconhece a necessidade de diálogo com pessoas qualificadas nesta área (49), mote que incentivou este artigo, com o conhecimento de duas pessoas da área da Psicologia e do acompanhamento psicológico de pessoas e famílias que lidam com questões relacionadas com a orientação sexual ou a identidade de género.

Um passo importante na redação do documento da Congregação para a Educação Católica é o uso da expressão “teoria” de género em vez de “ideologia”, uma vez que todas as ideologias são perversas, pois definem uma determinada visão do mundo reduzindo-a a absoluto, não deixando assim espaço para o diálogo. Qualquer ideologia pretende, aliás, fundamentar e orientar a forma de agir de pessoas e grupos numa única direção, o que não se pretende por nenhuma parte que quer entrar em diálogo. O diálogo implica sempre duas ou mais pessoas; assim, poder-se-ia escutar, por exemplo, especialistas que trabalham com pessoas cuja identidade de género é incongruente com o sexo de nascença e mesmo com as próprias pessoas e as suas famílias.

Conscientes de que esta é uma área em atual desenvolvimento e expansão, torna-se pertinente e necessária uma clara distinção de termos, de acordo com o que no momento se mostra mais consensual entre os diversos domínios que lidam diretamente com o tema. Assim, é fundamental distinguir os seguintes conceitos: sexo, género, identidade de género e orientação sexual. Segundo as linhas orientadoras da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP) e da American Psychological Association (APA), por sexo entende-se aquele que é biológico, observado na altura do nascimento através da genitália externa, mas constitui-se também pelos níveis hormonais, cromossomas e genitália interna. Relativamente ao género, muitas teorias defendem a possibilidade de tratar-se de uma construção social no sentido do que é entendido como mais típico para homens e mulheres em determinada sociedade, tempo e cultura, podendo assim variar conforme as sociedades, as culturas e ao longo dos tempos. Por sua vez, quando falamos de identidade de género, referimo-nos ao autorreconhecimento e identificação inerente da pessoa enquanto homem ou mulher, podendo não estar alinhado com o sexo reconhecido no nascimento, situação encontrada em algumas pessoas, sendo  precisamente do termo identidade de género que se fala quando se aborda as pessoas comummente apelidas de “transexuais”. Finalmente, orientação sexual refere-se à atração romântica e sexual da pessoa e não tem nenhuma relação com a identidade de género.

Muito se tem avançado na investigação sobre a identidade de género no campo da biologia e da medicina, campos com os quais se pode dialogar (5). Por exemplo, um grupo de médicos holandeses, norte-americanos e espanhóis do International Gender Diversity Genomics Consortium, publicou um artigo em fevereiro de 2018 abrindo a possibilidade de a identidade de género e as construções sociais relacionadas serem influenciadas em parte por fatores inatos à genética. Também um grupo de médicos italianos publicou, em 2017, um sumário dos estudos feitos entre 1948 e 2017 no campo do comportamento sexual e identidade de género como resultado de fatores biológicos (nature) e culturais (nurture).

Este sempre foi o ponto de partida de Jesus no Evangelho: não discriminar nenhum ser humano seja qual for a razão, livre de qualquer mentalidade machista, ou bullying ou violência baseada nas características específicas da pessoa .

Entre tantas abordagens ao tema, a única conclusão que é clara, mesmo na área das chamadas ciências exatas, é que não há dados suficientemente sólidos para uma concordância unânime sobre o assunto. O que sabemos com certeza é que existem  pessoas que não se identificam com o sexo com que nasceram e que isso, juntamente com as mensagens sociais contraditórias, lhes provoca sofrimento e confusão. Este sofrimento é reconhecido desde 2013 como “disforia de género” no Manual de Diagnóstico e Estatística das Doenças Mentais na sua 5ª revisão (DSM-5) pela Associação Americana de Psiquiatria e mais recentemente, precisamente este mês de junho de 2019, a Organização Mundial de Saúde retirou o diagnóstico de “incongruência de género” do capítulo das doenças mentais e incluiu no capítulo da saúde sexual na Classificação Internacional de Doenças na sua 11ª revisão (CID-11), que deve ser adotada por todos os países até janeiro de 2022.

Sendo certo que o sofrimento associado a estas situações existe e tem consequências graves, como a investigação internacional e a experiência de quem trabalha diariamente com estas pessoas revela, os educadores católicos (a quem o documento se destina particularmente) e todos os outros, quando se deparam com alguém que vive esta realidade, devem receber essa pessoa com um profundo respeito pela sua dignidade. Este sempre foi o ponto de partida de Jesus no Evangelho: não discriminar nenhum ser humano seja qual for a razão (15), livre de qualquer mentalidade machista (15), ou bullying ou violência baseada nas características específicas da pessoa (16). Neste caminho, é também fundamental continuar a dignificar as mulheres, reconhecendo o seu contributo para a evolução das sociedades e do mundo, através das suas capacidades intelectuais e afetivas e da defesa dos mais fracos e marginais (17.18).

Os católicos dedicados à educação devem sempre promover um ambiente em que o outro e a comunidade levam a dianteira e em que o próprio é capaz de se aceitar como é e saber-se aceite pelos outros na sua totalidade. A escola é fundamental para o crescimento da pessoa humana, mas sempre como lugar subsidiário de educação (39.46). A máxima “a educação começa em casa” dá à família a responsabilidade de ser a primeira a educar pelo exemplo. Contudo, cabe aos educadores em geral a missão de colaborar com as famílias no desenvolvimento de cidadãos para o mundo e cabe aos educadores católicos a missão de educar corações compassivos e misericordiosos, acolhedores e amorosos como o de Jesus (39).

A base de toda a antropologia católica é a dignidade da pessoa humana e o respeito pela natureza humana. Mais ainda, a narrativa da criação humana leva-nos a acreditar que todo o ser humano é criação muito boa por um Deus que é bom, em quem o ser humano encontra a sua totalidade (30-33).

O ser humano é composto por todas as suas dimensões e não se reduz à sua genitalidade. A educação para a afetividade, a sexualidade e as questões de género deve ter em conta a totalidade da pessoa humana e a integração dos elementos biológicos, psico-afetivos, sociais e espirituais.

Por isso mesmo, o que não pode acontecer é cair-se no relativismo emocional e no individualismo que, em vez de pôr no centro o outro e a comunidade, põe um eu alheado da realidade, chamando liberdade a uma falsa noção de que tudo se pode sozinho (19.20). A consequência deste isolamento não pode ser mais que, por um lado, uma ideia de identidade humana baseada em valores subjetivos, relativos e individualistas e, por outro, uma separação radical entre o corpóreo e o espiritual em cada ser humano (22.23).

O ser humano é composto por todas as suas dimensões e não se reduz à sua genitalidade. A educação para a afetividade, a sexualidade e as questões de género deve ter em conta a totalidade da pessoa humana e a integração dos elementos biológicos, psico-afetivos, sociais e espirituais (3). Neste sentido, já em Amoris Laetitia o Papa Francisco tinha dito “SIM à educação sexual” (AL 280). Segundo o Papa, só se pode entender esta formação como educação para o amor. É um desafio no mundo atual, em que se confunde sexualidade com sexo e genitalidade com orientação e parece que os conceitos não estão claramente definidos. Sobretudo se tivermos em conta algumas correntes de pensamento que distinguem de tal modo sexo e género que estes passaram a descrever duas realidades distintas (10.11).

A educação para a afetividade é fundamental em todas as etapas do ser humano, sendo importante adaptar a linguagem e os métodos a cada idade, a cada contexto e, especialmente nos anos da infância e adolescência, a cada pessoa, uma vez que o crescimento psico-afetivo-sexual-social demora o tempo de cada um e não se desenvolve uniformemente.

Aos educadores católicos pede-se não só uma preparação técnica, mas também – e sobretudo – a abertura ao religioso e ao espiritual (48), formando uma verdadeira comunidade educativa atenta ao didático e ao emocional (49). Estão convocados a formar uma comunidade que lidera e ensina pelo exemplo cristão, que é o do acolhimento, diálogo e inclusão ao jeito de Jesus, “o qual, ao mesmo tempo que propunha um ideal exigente, não perdia jamais a proximidade compassiva às pessoas frágeis” (AL 38). Afinal, todos estamos chamados a educar para o amor humano (50).

O caminho para o diálogo começa com a escuta, para conhecer a realidade do mundo e não ter medo de propor o que mais conduz à felicidade duradoura. A Igreja Católica, que não vive alheada do mundo, mas vive no mundo e procura responder com amor e respeito às perguntas do ser humano, também reflecte, propõe e se abre a um caminho de diálogo. Que continue o diálogo e a escuta e que não se reduza o ser humano a ideologias.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.