1. Como mel para a boca
Ganeses de tradição ortodoxa russa interpretam o hino Christ is risen from the death («Cristo ressuscitou dos mortos»). Apreciamos particularmente o sacerdote convertido em chefe de coro em primeiro plano e a partida em procissão movendo todos a anca…
Quem disse que uma tradição milenar é necessariamente estática?
2. Um texto bíblico
Ao longo dos 7 domingos do tempo pascal, propomos um mergulho nos relatos da Páscoa e da Ressurreição. Hoje, eis o momento em que Jesus se apresenta aos seus apóstolos e Tomé compreende que Cristo ressuscitou verdadeiramente.
Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas as portas do lugar onde os discípulos se encontravam, com medo das autoridades judaicas, veio Jesus, pôs-se no meio deles e disse-lhes:
– A paz esteja convosco!
Dito isto, mostrou-lhes as mãos e o peito. Os discípulos encheram-se de alegria por verem o Senhor. E Ele voltou a dizer-lhes:
– A paz seja convosco! Assim como o Pai me enviou, também Eu vos envio a vós.
Em seguida, soprou sobre eles e disse-lhes:
– Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoardes os pecados, ficarão perdoados; àqueles a quem os retiverdes, ficarão retidos.
Tomé, um dos Doze, a quem chamavam o Gémeo, não estava com eles quando Jesus veio. Diziam-lhe os outros discípulos:
– Vimos o Senhor!
Mas ele respondeu-lhes:
– Se eu não vir o sinal dos pregos nas suas mãos e não meter o meu dedo nesse sinal dos pregos e a minha mão no seu peito, não acredito.
Oito dias depois, estavam os discípulos outra vez dentro de casa e Tomé com eles. Estando as portas fechadas, Jesus veio, pôs-se no meio deles e disse:
– A paz seja convosco!
Depois, disse a Tomé:
– Olha as minhas mãos: chega cá o teu dedo! Estende a tua mão e põe-na no meu peito. E não sejas incrédulo, mas fiel.
Tomé respondeu-lhe:
– Meu Senhor e meu Deus!
Disse-lhe Jesus:
– Porque me viste, acreditaste. Felizes os que crêem sem terem visto!
Evangelho segundo São João 20,19-29
3. O esclarecimento
O discípulo Tomé exprime uma dupla exigência: “Se eu não vir o sinal dos pregos nas suas mãos e não meter o meu dedo nesse sinal dos pregos e a minha mão no seu peito, não acredito”. Para acreditar, o discípulo quer não só ver, mas também tocar.
Ao pedir para “tocar”, o discípulo convoca o mais inequívoco dos 5 sentidos:
- Com uma visão, poderia tratar-se de uma aparição;
- Com o tacto, a ressurreição carnal é perfeitamente confirmada.
É esta certeza que é oferecida a Tomé, segundo testemunham os evangelhos: Jesus ressuscitou, venceu a morte não sob a forma de um espírito, mas em todo o seu ser de carne.
A ressurreição na carne põe em evidência um ponto importante do cristianismo: Deus-feito-homem nasce, vive e morre num corpo e ressuscita nesse mesmo corpo, pelo que a carne do homem é digna, o corpo do homem é bom.
Esta forma de pensar não era evidente na Antiguidade e permaneceu tema de debate. Platão, por exemplo, reverenciava o mundo das ideias, mas criticava a carne, lugar de tudo o que é baixo, segundo ele. No Fedro, Platão qualifica mesmo o corpo de “túmulo”. O corpo seria uma prisão que sufoca o nosso espírito:
«Íntegras, simples, imutáveis e bem-aventuradas eram as aparições que nos enchiam […] pois, numa luz pura, éramos puros; não carregávamos a marca deste túmulo que sob o nome de “corpo” trazemos agora connosco, vinculados a ele como a uma concha.»
Um pensamento que fizesse do corpo um túmulo, um lugar necessariamente mau, está a anos-luz dos ensinamentos do Evangelho.
As características do corpo do Ressuscitado ensinam-nos outra coisa: Jesus ressuscita com as suas feridas. Assim, ele assume tudo o que pertence à humanidade, mesmo os seus sofrimentos. Ele não regressa num corpo de Apolo, nem sob a forma de uma beleza ideal a alcançar.
A beleza segundo o Evangelho não é, portanto, nem uma ideia nem uma aparência: a beleza toma a forma de um corpo real que suportou o sofrimento e que ressuscitou com as marcas das suas feridas.
4. E ainda uma palavra final…
Frédéric Ozanam (1813-1853) foi professor de literatura estrangeira na Sorbonne e ensaísta. Fundou as Conferências de São Vicente de Paulo para cuidar dos mais pobres. Para ele, eram os pobres que permitiam fazer a experiência táctil de Tomé. Cada um pode, com efeito, ter a mesma dúvida que o discípulo. Para Ozanam, o serviço aos pobres dá a certeza oferecida a Tomé.
«Parece que é necessário ver para amar e nós não vemos Deus senão pelos olhos da fé e a nossa fé é tão débil! Mas os homens, mas os pobres, vemo-los com os olhos da carne, eles estão aí e nós podemos meter o dedo e a mão nas suas feridas e as marcas da coroa de espinhos são visíveis na sua fronte. E aqui a incredulidade já não pode ter lugar e nós deveríamos cair aos seus pés e dizer-lhes com o apóstolo: Tu es Dominus et Deus meus; vós sois nossos mestres e nós seremos vossos servos.»
Citado em Gérard Cholvy, Frédéric Ozanam – l’engagement d’un intellectuel catholique au XIXe siècle, 2012.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
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