Não, não é explodir-se invocando qualquer deus. É fazer “rebentar” em cima de alguém uma pressão moral(ista), sem empatia. Esta é uma arte fértil em terrenos religiosos. Uma arte, aliás, de que eu próprio, em boa verdade, mais vezes do que gostaria, sou exímio praticante.
Com terrorismo religioso, consciente do exagero da expressão, refiro-me a práticas discursivas, muito frequentes no palco da crença, em que se confronta um terceiro com passagens bíblicas ou ideias morais, diante de determinada situação, angústia, dilema, emoção positiva ou frustração. Assim como o nitrogénio usado num explosivo não é em si mesmo mau (essa mesma matéria-prima usa-se para fertilizar os campos), as ditas inspirações religiosas são da mais valiosa essência, mas em modo de terrorismo religioso, ao invés de desafiarem a consciência pessoal, explodem num dinamismo que pode configurar opressão e coação.
Abaixo exploro telegraficamente alguns exemplos:
a) Consumismo e mais um celeiro
É fascinante a passagem de Lucas que nos confronta com o armazenista imprudente que somos (Lc 12, 16-21). Construir mais um celeiro é, na metáfora evangélica, a menos libertadora e a mais acético-securitista opção. Em vez de liberdade, traz, de forma auto-centrada, mais e mais ambição. Mesmo cuidando de não puxar em demasia pelo lado teleológico da parábola (nessa mesma noite o agricultor morre), imagine-se que apetecia ajudar alguém a conter gestos consumistas e armazenistas, caricaturalmente previdentes. Seria um exemplo de terrorismo religioso confrontar tal pessoa, a quente, com esta passagem. Um dia poderá haver desejo de fazer algum aprofundamento, mas, quando se quer ajudar o próximo, há que acolher a pessoa como é e como está. Na vertente caso poderia ver-se como trabalhar o reconhecimento da ansiedade (porventura compulsão) nesses impulsos aforristas. Só depois de muito exercício interior aceite e conseguido, poderia ter sentido a pessoa auto-confrontar-se com uma passagem bíblica desta natureza que, temos de admitir, é um autêntico tesouro libertador.
Poderia ser incluído neste tipo de armamento uma célebre expressão muitas vezes usada com crianças que não querem comer: “olha que há muitos meninos em África com fome”. É verdade que há muitas pessoas que têm fome e isso deve ser denunciado e gritado a boa voz, desafiando cada um e cada comunidade a uma partilha maior. Mas diante da criança que não come é melhor rever empaticamente o que ela sente, as suas frustrações e angústias. E talvez também as nossas, pois até poderemos estar a forçar uma colher que não tinha de ser ingerida. A constatação das nossas burguesias e o apelo à distribuição devem ser abordados noutro momento…
b) Insensibilidade aos mais pobres e o bom samaritano
Este exemplo foi por mim vivido enquanto espectador e arrepiou-me por dentro, numa experiência marcante. Certo dia ouvi uma pessoa (religiosa), em chave (pseudo)cristã, a confrontar outro alguém que não estava, por sinal, a ser muito generoso com um pedinte que solicitava e que padecia. Como uma bigorna, despejou-se em cima do cidadão, em tom corretivo, a passagem em Lucas, 25, que invoca o bom samaritano. Mais uma vez estamos diante de um espelho desafiante que o Evangelho nos oferece, mas para o qual cada um, no seu tempo e no seu modo, se pode (auto, apenas auto) confrontar, e, porventura, ampliar, a partir da sua realidade interior e exterior, a atenção ao próximo e a generosidade.
Mais uma vez estamos diante de um espelho desafiante que o Evangelho nos oferece, mas para o qual cada um, no seu tempo e no seu modo, se pode (auto, apenas auto) confrontar, e, porventura, ampliar, a partir da sua realidade interior e exterior, a atenção ao próximo e a generosidade.
c) Animalismo e a centralidade humanista
Em abstrato – e pode ser útil explicitá-lo – acolher um cão tem um valor diferente de acolher um humano. Mas um acolhedor de humanos não tem garantido um coração generoso e uma ação pura, nem pode ser aprioristicamente criticado quem acolhe um cão. Estamos mais uma vez diante da tensão entre a fasquia moral abstrata e a realidade concreta de cada ser humano, imerso na sua situação. Mesmo as pessoas que gostam muito de animais, tendem a apresentar alguma latitude crítica para a excessiva dedicação, sinal dos nossos tempos, por vezes preocupante. É compreensível ficarmos um pouco impressionados, por exemplo, com uma cadela à qual, num espaço de cuidados para cães, se pintam as unhas. Mas, mais uma vez, esta problematização que parte de um caso concreto, mas se realiza no espaço global, não pode ser usada como arma de arremesso face a quem, nas suas circunstâncias, trata de um animal com os cuidados que a sua consciência, no humanismo que lá couber, se encontra.
d) Morte de entes queridos e ida para o céu
Aqui temos um clássico, mais passado do que presente, mas aqui e ali ainda frequente nas Igrejas e em algumas homilias fúnebres. Alguém chora profundamente a morte de um ente querido, numa dor e numa angústia que, sabemos todos, não tem palavras, e é abordado em exército religioso com esta bomba: “foi para o Céu, está com Deus”. É talvez o caso mais caricatural de terrorismo religioso, muitas vezes sem consciência nem intenção, admito. Mais uma vez duas entidades que podem ser ligadas e positivamente vividas (a angústia da perda e a esperança na ressurreição) mas nunca em curto-circuito, muito menos induzido por um terceiro. Deixemos chorar quem tem de chorar. Assim fazia Jesus, que, mais ainda, muitas vezes, chorava também. A esperança da vida que não morre é para fazer não sem chorar, mas chorando bem.
Temos alguns deveres de proclamar, em sentido abstrato e em cenário lato, caminhos mais proféticos. Mas o que acima se (auto)critica no terrorismo religioso é a instrumentação, a sincronia errada entre tal apelo promissor e a circunstância do outro, tipicamente em sofrimento ou em radical distração, onde não é explícita a procura de mais. Na generalidade, somos apóstolos em anúncio, mas, se quisermos imitar Jesus, a única agenda do tu-a-tu é a radical colocação nas suas sandálias, acolhendo, acolhendo e acolhendo. Só depois, e quanto a mim mediante autorização, se pode proporcionar algum (auto)questionamento que alcance outros apontamentos e horizontes. Sem a auto-explicitação da sede, qualquer excesso de água gera afogamento.
As fasquias, esticando essa mesma imagem, são feitas para serem superadas com realismo. Talvez com esforço, talvez com treino, certamente com vontade, mas sempre com possibilidade pessoal e com desejo aferido.
Notar ainda que em toda esta problemática, que é, em última análise, uma equação pedagógico-pastoral, pode residir a permissão ou não do sopro do Espírito. O Espírito Santo opera na realidade, como ela é. Quando o religioso nega a realidade (e, concretamente, o estado sagrado da pessoa em movimento), então está a negar-se, precisamente, a abertura ao Espírito Santo.
É também por isto que a Palavra das escrituras, proclamada e partilhada comunitariamente, tem um potencial imenso. Mas essa mesma Palavra e a respetiva hermenêutica inculturada são sementes a escutar, a escavar e a frutificar na intimidade sagrada e subjetiva de cada um e da sua consciência. E é isso o mais relevante na nossa fé. Quando, pelo contrário, a palavra é embrulhada em explosivo, simplesmente mutila em vez de curar. No limite, afasta as pessoas de Deus, que só sabe acolher, abraçar, criar e amar.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.