Em “A vida em 10 imagens” (semanário Expresso de 17 de Julho), Isabel Moreira aponta a pílula contraceptiva como um “grande símbolo de libertação das mulheres”. Um episódio na vida de Martin Luther King ajuda-nos a ver que às vezes são necessárias decisões radicais para nos libertarmos daquilo que nos pode dominar.
Na sua autobiografia, o pastor afro-americano conta como a sua família era alvo constante de ameaças de morte, o que o levou a adquirir um revólver. Contudo, a decisão de carregar uma arma (chamemos-lhe plano A) implicava a possibilidade de um dia a usar (chamemos-lhe plano B). Para não ser dominado por esta ideia, que fez este grande defensor da não-violência? Livrou-se da arma quando pôde. Outros talvez pensassem que a posse de uma arma de fogo os libertaria do medo provocado por ameaças de morte, mas para Luther King o importante era não ser dominado pela ideia de um dia ter que usar uma arma. Definitivamente, certas decisões testam a nossa fibra moral.
Há um paralelismo, ainda que em sentido oposto, entre esta decisão heroica e o recurso à contracepção, que poucos, hoje em dia, contestam, de tão forte e disseminada que é a propaganda. A contracepção é, em primeiro lugar, uma decisão, neste caso contra a ideia, ou possibilidade, da mulher ficar grávida. É uma condição que parece permitir ao homem e à mulher viverem de forma livre e descomprometida a sexualidade, mas que os pode impedir de ver e, eventualmente, experimentar algo que os transcende: a capacidade única e extraordinária de se participar no mistério da vida. Isabel Moreira parece querer riscar este elemento da equação. Acontece que ele continua lá. Teimosamente lá.
É uma condição que parece permitir ao homem e à mulher viverem de forma livre e descomprometida a sexualidade, mas que os pode impedir de ver e, eventualmente, experimentar algo que os transcende: a capacidade única e extraordinária de se participar no mistério da vida.
Quando falha a contracepção – o que não é nada de novo, ou não tivesse a vida a força que tem – passa-se inevitavelmente ao plano B, e aqui só duas opções são possíveis. É a altura certa para nos deixarmos inspirar pela decisão de Luther King. Se há uma abertura à vida, pois bem, segue a gravidez em frente e ganha-se em humanidade o que se perde em comodidade. Se, pelo contrário, formos dominados por uma mentalidade contraceptiva, então faremos o que Luther King eventualmente teria feito caso nunca se tivesse livrado da arma que adquirira. Falamos do aborto, claro está, que não poucos usam como método contraceptivo. A mentalidade contraceptiva é tanto mais predominante quanto mais frágil é o compromisso (pensemos nos encontros casuais ou nas situações onde ainda não há autonomia financeira). No limite, não contempla nova vida no horizonte, caso contrário não seria contraceptiva.
Muitos pensaram que a introdução da pílula e demais meios contraceptivos teria como consequência lógica uma sociedade livre de gravidezes indesejadas e, logo, de aborto. Paradoxalmente, não foi nada disso que se observou, tal como insuspeitos investigadores constataram ao longo de décadas: “Correndo o risco de ser repetitivo, gostaria de lembrar que encontrámos a maior frequência de abortos induzidos nos grupos que, em geral, usam mais métodos anticoncepcionais.” Alfred Kinsey (1955); “À medida que mais pessoas recorrem à contracepção, haverá um aumento, não uma queda, na taxa de aborto.” Malcolm Potts (1973); “Ao contrário do que se poderia esperar, há evidências irrefutáveis que o fornecimento de anticoncepcionais leva a um aumento na taxa de aborto.” Judith Bury (1981); “Com as mulheres a controlarem a contracepção de forma eficaz, continua a haver mais abortos do que nunca.” Lionel Tiger (1999). As citações podiam continuar, mas o espaço é pouco.
A mentalidade contraceptiva cria uma cisão, ou desunião, entre a dimensão unitiva/conjugal/afectiva e a dimensão procriativa, deixando de existir o elemento que força o homem, no bom sentido, a viver uma sexualidade responsável, o que é música para os ouvidos de muitos, predadores incluídos. O Papa Paulo VI estava certo quando escreveu na encíclica Humanae Vitae (n.º 17) que é de “recear que o homem, habituando-se ao uso das práticas anticoncepcionais, acabe por perder o respeito pela mulher e, sem se preocupar mais com o seu equilíbrio físico e psicológico, chegue a considerá-la como simples instrumento de prazer egoísta e não mais como a sua companheira, respeitada e amada.” Contra tudo e contra todos, mas não contra Deus, Paulo VI codificou na doutrina católica uma das mais controversas posições da Igreja, que a maioria dos católicos contesta, mas que, curiosamente, tem levado muitos à conversão ao catolicismo. A verdade passa por aqui, dizem.
É pena que um determinado tipo de feminismo nunca tenha aproveitado para fazer uma reflexão profunda sobre os efeitos nefastos da revolução sexual. Tudo parece sempre reduzir-se à contracepção e emancipação feminina, como se homem e mulher, neste debate sobre a sexualidade, fossem os piores inimigos, quando na verdade se complementam e potenciam, de forma única e original. É caso para dizermos: e que tal voltarmos a unir o que um dia separámos?
Nota: o autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.