Como cristã, confesso-me baralhada com os acontecimentos dos últimos dias. Uma pessoa morta, carros incendiados, discursos confusos que, à partida, agridem apenas pelo tom em que são proferidos. Confesso-me assustada e confusa ao mesmo tempo.
Ao levar isto à oração, vários cenários se clarificam no meu coração:
Num primeiro cenário olho a polícia. Acredito na nossa polícia, confio que fazem muito, às vezes com poucos recursos, que tentam ser justos e lutar pela justiça e pela paz. Consigo ver o medo, as dúvidas e as inseguranças. Consigo ver a revolta e o sentimento de injustiça que sentem, o desânimo e a vontade de baixar os braços. Consigo ver que há polícias melhores e outros piores. Que há atitudes corretas e outras menos corretas. Que há justiça mas também haverá injustiça. Que existe aplicação de poder na justa medida e que também o haverá para além da medida. Como humanos, somos tudo isso, e os polícias são humanos.
Num segundo cenário, olho os migrantes, os de outra etnia, os que vivem em bairros problemáticos. Os que nasceram nestes bairros, os que cresceram com os pais na prisão. Os filhos dos pais que fizeram escolhas erradas na vida e que os levaram a viver à sombra destas escolhas, muitas vezes sonhando ser filhos dos pais dos amigos com carros bonitos e mães carinhosas atentas às falhas na escola e presentes nas reuniões. Como o rótulo se lhes colou na vida e teima tantas vezes em não descolar. Quem nunca ouviu as expressões: está-lhe no sangue, sai ao pai, com uma mãe daquelas que futuro se esperava…
Num terceiro cenário, vejo muitos portugueses. Sentem-se ameaçados, inseguros e sem perceber como lidar com tantas diferenças e dificuldades. Reagem a alguma coisa que não sabem em profundidade o que é e o que está na origem. Alguns assumem a posição de juízes, outros de investigadores e outros ainda colocam-se numa posição de que não lhes diz respeito. Muitos defendem que não há discriminação em Portugal, no entanto, assumem que os problemas são dos bairros onde eles vivem, que todas as pessoas que lá vivem são perigosas. São pessoas que não se misturam com quem vem de fora, com quem tem uma vida difícil. Não conseguem olhar nos olhos uma pessoa diferente sem um olhar de pena ou de desprezo. E, claro, os filhos deles não se dão com os marginais porque os pais podem ser más influências. Muitos dizem com orgulho: eu não sou racista mas não gosto de ciganos, ou eu até tenho amigos pretos mas não gostava que a minha filha se casasse com um.
Num quarto cenário, vejo uma minoria que assume os seus medos e diz que sim, que é verdade que não se sente segura e que por muito que não queira tem receio de se cruzar com certos grupos de pessoas, seja por terem cor diferente, por usarem lenços ou turbantes ou por serem de etnia cigana. Assumem-no com pena e alguma vergonha. Tentam explicar aos filhos que é errado ser assim, mas se um filho chegar a casa com um amigo “fora da caixa” para lanchar temem que o possa levar por maus caminhos.
Num quinto cenário surgem os moderados, os que ouvem os vários lados, os que verdadeiramente os olham nos olhos e veem um ser humano do outro lado. Com histórias de vida diferentes, que não os conhecem mas que se dispõem a conhecer. Gosto de pensar que estas pessoas olham e conseguem ver Jesus em todas as pessoas. Sonho em ser pertença deste pequeno grupo mas na verdade não sei se o consigo.
Estes cenários rezados por mim não aparecem nas notícias. Nas notícias aparece uma polarização extrema que se aproveita destes medos, desta sede de visibilidade e deste desejo de protagonismo.
Estes cenários rezados por mim não aparecem nas notícias. Nas notícias aparece uma polarização extrema que se aproveita destes medos, desta sede de visibilidade e deste desejo de protagonismo.
Na comunicação social aparece o extremo que incita o ódio contra a polícia, onde todos são racistas, odientos e violentos, e o extremo que festeja a morte de um ser humano justificada pelos eventuais crimes que de certeza cometeu.
Observando este cenário à luz da Paixão de Cristo, vejo autoridades que agem mal, autoridades que lavam as mãos, autoridades que não sabem como lidar com o sofrimento, com o medo e com a diferença. Autoridades que querem fazer diferente. Vejo bons e maus ladrões, uns que falam com Jesus e os que nunca o chegam a encontrar. E, sim, vejo os amigos de Jesus que se afastam para não dar a cara por Ele e o deixam sozinho.
Como cristãos, não nos podemos excluir nem afastar, não podemos ficar calados nesta polarização sem sentido, neste medo crescente que a violência está a gerar, só podemos tentar ser o rosto de Cristo ressuscitado que olha cada um de nós como filhos de Deus, únicos e muito amados.
Tal como fui desafiada na minha Comunidade de Vida Cristã (CVX) Fermento, quero propor que cada um, no seu metro quadrado, seja rosto de paz, rosto de ressurreição e rosto de esperança. No pouco, pequeno e possível, não tenhamos medo de olhar para a nossa realidade com os nossos medos e preconceitos, e que, tocando as nossas feridas ouçamos o que Jesus nos pede: “Que a paz seja convosco”.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.