No nosso mundo, a pobreza é cada vez mais um objeto de luta social. Diminuí-la e erradicá-la são parte habitual dos objetivos e programas políticos de cada país e, depois do ano 2000, também do programa internacional das Nações Unidas. A definição daquilo a que inicialmente chamámos «Objetivos do Milénio para o Desenvolvimento» e que, a partir de 2015, apelidámos de «Objetivos do Desenvolvimento Sustentável», foi, de facto, uma grande conquista. Pela primeira vez, a comunidade internacional fixou objectivos quantificáveis para reduzir a pobreza a nível mundial. A definição conjunta destes objectivos permitiu a libertação de recursos e sustentou políticas de redução da pobreza em maior escala. São tudo motivos de alegria!
Ora, esta boa nova tem um efeito paradoxalmente negativo: o objetivo de diminuição da pobreza veio reforçar a redução do «pobre» à categoria de «objeto». A pobreza tornou-se mais evidente nas estatísticas e nas políticas, o que permite tornar mais eficazes os programas de luta contra a pobreza. Mas, ao mesmo tempo, esta objetivização da pobreza torna «o pobre» mais invisível. Vemos, sobretudo, o que lhe falta: ao pobre falta comida, falta alojamento, o que vestir, emprego, cuidados de saúde, educação… E vemos cada vez menos a pessoa que vive em situação de pobreza, com toda a complexidade associada à vida humana, marcada por necessidades a satisfazer, mas também por competências a empregar. O sujeito transforma-se em objeto.
É contra esta objetivização da pobreza que se manifesta o movimento ATD Quart Monde desde a sua criação. Uma convicção anima os seus membros: o combate contra a pobreza deve ser feito «com» os pobres e não «pelos» pobres. Este movimento nasceu em 1957, em França, no campo de Noisy-le-Grand, graças a uma forte intuição do Padre Joseph Wresinskie que mudaria este olhar que existe sobre os pobres: a intuição de se encontrar, não face a casos sociais individuais, mas diante de um povo, com um mesmo modo de enfrentar as necessidades, os mesmos medos de rejeição e de integração das suas crianças, as mesmas experiências de desemprego e de assistência social. Segundo Wresinski, o único modo de lutar contra a miséria é, então, a de devolver a este povo a sua dignidade e de romper com a fatal transmissão da miséria de pais para filhos, bem como com a crença de que são eles os únicos responsáveis pela situação em que se encontram: «Todos os que fizeram avançar os pobres, libertaram-nos, em primeiro lugar, deles mesmos. Acreditaram neles e convenceram-nos de que não são culpados duma miséria que a história lhes legou.» (Lespauvressontl’Eglise, entrevista com GillesAnouil, Cerf, 2016, p. 107)
Fazem-se muitas coisas em nome dos pobres ou do sofrimento dos pobres. Muitas vezes, pela sua instrumentalização, somamos mais violência à violência. Com Wresinski, transformamos o nosso olhar sobre a miséria, que deixa de ser percebida como uma lei natural mas passa a ser uma injustiça desumanizante. A política da luta contra a pobreza deve, assim, fazer-se a partir dos mais pobres, com eles. O pobre não é apenas um beneficiário da caridade, ele transforma-se em fonte de riqueza assim que lhe é dada a palavra. O receio de dar por si na rua e o medo de que lhe sejam retirados os filhos, que são recorrentes quando os mais pobres tomam a palavra, dizem, apesar de tudo, algo de precioso: «a família é o único refúgio quando tudo falta; apenas ali, se é ainda bem-vindo; apenas ali, se é ainda alguém» (p28).
Como levar em consideração a sabedoria própria das pessoas em situação de grande pobreza e repensar, a partir dela, as políticas de combate à pobreza? Para avançar nesta direcção, a ATD Quart Monde lançou um projeto aparentemente absurdo: ver a pessoa em situação de pobreza com um «investigador» pode contribuir para a criação de mais conhecimento sobre a pobreza. É uma loucura num mundo em que apenas os académicos são considerados detentores do saber e criadores legítimos de conhecimento. Mas sabemos bem que só aqueles que consentem na loucura chegam algum dia a mudar o mundo. Esta «loucura» materializou-se numa série de «encontros improváveis». Primeiro, ATD Quart Monde associou-se a um agente inquestionável do mundo académico, a Universidade de Oxford. Assim pode garantir a dimensão científica desta aventura. Por esta via, consegue-se que os mundos da ação militante e do pensamento teórico se encontrem para trabalhar em conjunto. É um encontro improvável entre a lógica da ação eficaz e da realidade complexa.
É o encontro improvável entre três fontes diferentes de conhecimento: aquele que provém da pobreza, aquele gerado pela ação profissional de acompanhamento e assistência às pessoas em situação de pobreza e aquele procurado no estudo e no conhecimento intelectual sobre a pobreza.
Em seguida, e já que o conhecimento tem sempre um objetivo universal, a ATD Quart Monde quis conferir a esta investigação uma dimensão internacional. Seis grupos de trabalho, em seis países diferentes, debruçam-se sobre um mesmo projeto: três países do Norte – Inglaterra, França e os Estados Unidos; e seis países do Sul – Bangladesh, Tanzânia e Bolívia. É um encontro improvável entre o Norte e o Sul, com realidades de pobreza tão diferentes e com recursos de investigação tão desiguais. Por fim, este método de trabalho foi-se construindo ao longo do caminho que a ATD Quart Monde progressivamente percorreu e praticou nas suas universidades populares: o cruzamento de saberes. É o encontro improvável entre três fontes diferentes de conhecimento: aquele que provém da pobreza, aquele gerado pela ação profissional de acompanhamento e assistência às pessoas em situação de pobreza e aquele procurado no estudo e no conhecimento intelectual sobre a pobreza.
Este caminho, fundado sobre «o cruzamento de saberes», inverte três grandes princípios da investigação científica em geral, e da investigação sobre a pobreza em particular. Em primeiro lugar, o objeto transforma-se em sujeito: o pobre recupera o seu estatuto de pessoa e, além disso, torna-se ator e não somente vítima da pobreza. Depois, o objeto da investigação transforma-se em fonte: a pobreza já não se reduz aos dados a recolher no terreno, mas é concebida como uma experiência que dá um conhecimento singular e incontornável para a combater. Por fim, a oposição de conhecimentos torna-se uma aprendizagem recíproca: ao cruzar saberes, não se põem em concorrência as diferentes formas do saber, antes se «aprende a aprender» o saber do outro.
Não se sabe se este caminho virá a produzir resultados mais eficazes na luta contra a pobreza. Independentemente do seu resultado, trouxe já uma mudança radical de paradigma, em que aprendemos a dizer aos «beneficiários» da ação social: «sem vós, nunca mais».
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.