Este artigo é também publicado pelo jornal Observador.
Apesar de toda a roupa quente, do cachecol e luvas, do sol morno da manhã, o frio é cortante.
Apesar de todas as imagens do horror, que já vi em documentários, em fotografias, em memoriais, é quando atravesso o portão que verdadeiramente entro e tomo parte.
E apesar de todas as palavras, em tantas línguas, que já ouvi e li, o silêncio é de morte.
Um grito absorveu o som. O espaço absorveu a dor.
O sofrimento é quase tangível; uma presença que nos envolve, suspensa num tempo sem tempo.
Depois do arame farpado, caminho entre os edifícios de tijolo. Sigo a Guia que percorre um percurso escolhido, na rotina de acompanhar um grupo, atrás de outro. Imagino-a habituada às expressões de horror que contorcem as caras – a minha cara –, às lágrimas que deslizam sem serem contidas – as minhas lágrimas –, imagino que antecipe os que, por não poderem mais, desviam o olhar ou se encostam a uma parede como que empurrados pelo “murro” da brutalidade – uma parede fria no Bloco 18, quando as minhas pernas fraquejaram.
Perante os milhares de sapatos, óculos, próteses, pincéis da barba, escovas, malas, cestos, talheres, pratos, cafeteiras… perante as toneladas de cabelo humano… os telemóveis emudecem, as fotografias cessam, a respiração para e sinto o pudor de estar diante da intimidade de milhares de pessoas, pessoas como eu.
Sem conseguir parar de olhar, sou avassalada pela tristeza, pelo ímpeto de uma comunhão fraterna com as marcas de uma vida interrompida, retirada, assassinada, um milhão e seiscentas mil vezes.
Lembro-me do Livro do Êxodo: “Descalça-te, porque o chão que pisas é sagrado”.
Cruzo o meu olhar com o das outras pessoas eternizadas nos retratos das paredes. Detenho-me no medo, no vazio, na incompreensão. A pergunta, sem resposta, é: como foi possível?
Toco as páginas preenchidas com os quatro milhões de nomes resgatados, pelo Yad Vashem, da anulação vaticinada. Nomes de famílias inteiras, avós, pais, irmãos, bebés. E volta a pergunta: como foi possível fazermos isto uns a outros?
Sem conseguir parar de olhar, sou avassalada pela tristeza, pelo ímpeto de uma comunhão fraterna com as marcas de uma vida interrompida, retirada, assassinada, um milhão e seiscentas mil vezes.
No dia anterior foi lembrada a história de Mireille Knoll, contada pela sua neta. Mireille, francesa de 85 anos, sobrevivente do Holocausto, morreu em 2018, esfaqueada 11 vezes e queimada em sua casa em Paris, por motivos religiosos.
2018 dista mais de 70 anos do Holocausto e Paris fica a mil e quinhentos quilómetros de Auschwitz. Como é possível? O que não aprendemos ainda?
Um alto responsável Austríaco lembrou que as linhas de comboio que terminavam em Auschwitz, retornavam às cidades, vilas e lugares da Europa. O grotesco acabava ali, mas a origem do horror, a sua possibilidade, começava em casas vulgares, no quotidiano das instituições, nas palavras ouvidas, naquelas em que se acreditou, no que se reproduziu, no que permitimos, no que fizemos ou deixámos fazer a 6 milhões de pessoas, pessoas como nós.
Hoje, as ruas e os edifícios de Auschitwz-Birkenau estão vazios, são um memorial histórico, ético, moral, forte e arrebatador. Mas se nas cidades, vilas e lugares, na origem, deixarmos haver lugar para discursos de ódio, antissemitas ou outros, enquanto alimentarmos direitos de uns sobreponíveis aos de outros, enquanto acreditarmos que não é connosco, Auschwitz não terá sido plenamente libertado.
E poderá acontecer outra vez.
Nota da autora: Esta visita foi realizada enquanto Deputada do CDS, a convite da European Jewish Association, no âmbito de uma Simpósio sobre Holocausto e Educação.
Fotografia: ©Yoni Rykner
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.