Refugiados: pessoas como nós

Dirige o Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS) na Grécia. Francisca Onofre conta-nos histórias carregadas de sofrimento (mas também esperança) dos que por lá passam e lembra-nos que os refugiados não são números mas pessoas como nós.

Dirige o Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS) na Grécia. Francisca Onofre conta-nos histórias carregadas de sofrimento (mas também esperança) dos que por lá passam e lembra-nos que os refugiados não são números mas pessoas como nós.

Sábado, 6 de Julho 2019. Acabo de chegar do mercado de rua, ao pé da minha casa… Na verdade, a minha casa é a casa da comunidade dos jesuítas em Atenas, na Grécia, onde partilho um andar com os voluntários internacionais do Serviço dos Jesuítas para os Refugiados (JRS).

Gosto especialmente deste mercado onde os vendedores gritam em grego o que vendem, apesar de me atrever a dizer que 80% dos que lá estamos a comprar não entendemos metade do que nos dizem. Gosto de lá ir não só pela qualidade dos produtos mas principalmente porque é o lugar onde mais sinto que a Grécia se abre e se mistura com todos aqueles que não são gregos (onde me incluo e onde vou aprendendo que, quando oiço “ena evro”, tenho de pagar um euro).

Na Grécia estima-se que haja 11 124 348 habitantes entre os quais, no final de março, se estimavam que 79 500 fossem migrantes e refugiados. São números, não tiro a sua importância, mas são apenas números e estimativas, tal como, quando falamos de conceitos, são apenas conceitos! Precisamos de números e conceitos para nos organizarmos e informarmos mas sinto que cada vez mais precisamos é de pessoas. Pessoas concretas, com nome e uma história de vida que fazem parte da nossa história nem que seja porque fazem parte da história da Humanidade! Muitas vezes dizemos que são “asylum seekers” ou são migrantes ou refugiados ou emigrantes económicos… Eles não são nada disso! São a Joana, o Miguel, o Tiago e a Mafalda, que têm o estatuto de “asylum seekers” ou de migrantes ou de refugiados ou de emigrantes económicos. O que realmente são é pessoas, pessoas como todos nós!

Muitas vezes dizemos que são “asylum seekers” ou são migrantes ou refugiados ou emigrantes económicos… Eles não são nada disso! São a Joana, o Miguel, o Tiago e a Mafalda, que têm o estatuto de “asylum seekers” ou de migrantes ou de refugiados ou de emigrantes económicos.

Faço agora memória do domingo passado. Fui a uma missa celebrada em francês, onde vão muitas pessoas dos Camarões… podia dizer que era uma missa africana, com os cânticos e pessoas a dançar, daquelas missas muito alegres e vividas de que tanto gosto! No meio das pessoas, vi ao longe a Joana. Lá estava ela ao lado de dois voluntários do JRS com o sorriso no rosto! A Joana viveu bastantes meses na Casa de Acolhimento do JRS Grécia (Shelter), chegou grávida e, por isso, a sua filha é a bebé de todos nós. Há um mês foi viver para um apartamento partilhado com mais pessoas do seu país. É preciso ver o seu sorriso agora! No meio do medo que é dar o salto de saída de um shelter (casa de acolhimento), quando somos fortes como a Joana dá-se o salto para a independência! Desde sempre nos disse que quer ficar na Grécia, agora vem visitar-nos ao JRS sempre de sorriso e cada vez mais bonita. Quase todos os dias frequenta aulas de grego e inglês e tem um trabalho com contrato.

O JRS Grécia tem uma Hub Community, onde estão dois projectos que decorrem por vezes ao mesmo tempo. No 2º andar, fica o Magistories, um projecto de educação não formal para adultos (durante todo o dia) e crianças, (na parte da tarde), sendo que muitas, por diferentes razões, não vão à escola. Gosto especialmente das quintas-feiras à tarde, quando temos aula de pintura para crianças! Todo o edifício se enche de risos, criatividade, cor e barulho bom! Começámos estas atividades porque o Miguel ouviu falar do JRS e veio propôr-nos dar aulas de pintura. Não nos veio pedir nada, apenas para ser voluntário e ter um espaço para dar aulas de pintura a crianças, tal como fazia no seu país, antes de ter de vir embora devido a forças maiores do que ele. O Miguel é um homem novo e muito especial, não desistiu dos seus sonhos nem do que é! É pintor, é artista! Aqui na Grécia leva a sua arte e o seu sorriso aos turistas perto da Acrópole (onde pinta espetaculares caricaturas), às pessoas que o seguem no Instagram e podem comprar os seus quadros (que são de sonho!) e, no meio do trabalho e das aulas de inglês, francês e grego ainda nos veio propor fazer voluntariado para poder ensinar às crianças aquilo que o faz mais feliz.

Na JRS Hub Community, temos o Tea Time. Como o nome indica, é um espaço onde as pessoas podem vir para tomar um chá, café e comer uns biscoitos, enquanto conversam com amigos ou pessoas que se vão tornando amigas; onde podem encontrar jogos ou actividades para adultos e onde têm sempre voluntários que os acolhem. É como se de uma grande família se tratasse!

O Tiago está num campo de refugiados perto de Atenas, mas vem todos os dias, tal como muitos dos que participam nos projectos do JRS. Começou por vir ao Tea Time, mas depressa se identificou e pediu para ser voluntário da casa. Disse-nos que não gostava de não fazer nada e queria poder ajudar! Chegou sozinho à Grécia, vindo do Afeganistão, onde estudava psicologia, curso que teve de parar para abandonar o seu país. O Tiago é incrível com todas as pessoas. Sejam homens, crianças ou mulheres, todos gostam dele e sentem-se acolhidos pelo seu riso e abraço. Todas as manhãs tem aulas de grego e à tarde está connosco no Tea Time. Ele não acredita, mas é mesmo a alegria deste nosso espaço!

Como a Joana, o Miguel, o Tiago e a Mafalda, há tantos mais! Tantas mais histórias! São vidas carregadas de um sofrimento que não consigo sequer imaginar mas, sobretudo, são histórias de pessoas que desejam viver, amar e ser amadas, e ter uma vida como a de todos nós, sem medos, e onde se sintam parte activa de algo.

E por fim a Mafalda e o seu filho! A Mafalda viveu no abrigo do JRS durante muito tempo, há dois meses foi morar para outro abrigo e há algumas semana que vive num apartamento partilhado com duas mulheres. A Mafalda e o filho chegaram sozinhos, não têm mais ninguém, pois ela perdeu a filha, o marido, bem como a família. Demorou o seu tempo para fazer o luto – um luto de perder pessoas queridas e a sua terra -, mas agora há um tempo que deu o salto! Tem autonomia e para ela o JRS é a sua família e a Grécia o seu país! Com este salto começou a ir a todas as aulas que temos na Magistories, o seu inglês está muito melhor e está a aprender grego, quer muito encontrar um trabalho e dar uma boa vida ao filho! O melhor para mim é finalmente ver um sorriso na sua cara e que os seus olhos já não são tão tristes! A Mafaldaé um grande exemplo de reconciliação com a sua história de vida e de força!

Como a Joana, o Miguel, o Tiago e a Mafalda, há tantos mais! Tantas mais histórias! São vidas carregadas de um sofrimento que não consigo sequer imaginar mas, sobretudo, são histórias de pessoas que desejam viver, amar e ser amadas, e ter uma vida como a de todos nós, sem medos, e onde se sintam parte activa de algo.

Não são números, tal como não são números as pessoas que estão nos barcos que muitas vezes vemos parados às portas da Europa. São pessoas que têm um desejo imenso de viver e de trabalhar para ter a sua autonomia e poderem cuidar das suas famílias. Não foi o número 81 que morreu ontem num naufrágio ao pé da Libia, foram 81 pessoas, 81 vidas que fugiam do perigo para poderem viver num lugar seguro como todos nós! A Carola e o Miguel não salvaram números, o que está em causa são pessoas, salvaram pessoas do mar e deram-lhes oportunidade de terem uma vida como nós, porque os seus olhos e corações viram pessoas que gritavam por vida e esperança!

Por fim, claro, a Joana, o Miguel, o Tiago e a Mafalda são histórias verdadeiras e que me são muito queridas, mas os nomes são fictícios. E os nomes escolhidos são tipicamente portugueses para nos lembrarmos que podiam ser qualquer um de nós. Fi-lo assim também para poder dizer que as suas histórias e vidas são-me tão valiosas como a história de vida da minha amiga Joana, que durante um ano viveu na Colombia porque em Portugal não encontrava trabalho na sua área; ou como a do meu pai Miguel que é um grande exemplo para mim; como a do Tiago que vive há muitos anos fora de Portugal e teve uma grande coragem para ser a pessoa que é; ou como a história da minha cunhada Mafalda que está a começar o seu próprio negócio e que faz tudo pelos filhos, marido e família.

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.