A proposta de referendo recentemente apresentada sobre o controlo da entrada de imigrantes e um possível programa de quotas para os mesmos, não pode deixar de causar um sobressalto, para quem olha para a sociedade do ponto de vista da justiça, dos direitos humanos e da dignidade de cada pessoa.
Embora o seu proponente possa defender que semanticamente as perguntas são neutras por não induzirem uma resposta, na substância elas são tudo menos neutras.
Elas baseiam-se numa lógica de grupos, procurando traçar uma divisão entre “nós” e os “outros”, com base em instintos primitivos, gerados pela perspetiva de um grupo de fora que invade o “nosso” território para consumir os “nossos” recursos. Instintos estes que, como explica a neurociência, são resultado da ativação – nada racional – das nossas amígdala e ínsula cerebrais (as quais lidam com o medo e a ansiedade).
As perguntas propostas assentam, para além disso, numa lógica de despersonalização, com referência a um grupo abstrato de estrangeiros, deixando que a resposta seja influenciada pelo grupo que for idealizado pelas diferentes pessoas que tomam em mãos esta decisão (com base num critério totalmente arbitrário). É fácil apontar para um conjunto de pessoas, sem rosto, sem nome e sem história(s) de vida, e gerar um sentimento de exclusão do mesmo. Basta contar histórias, agitar fantasmas e fazer generalizações grosseiras.
Tudo isto já para não dizer que as perguntas passam por cima da enorme complexidade do tema da imigração, o qual nunca deveria poder ser condensado em perguntas de sim ou não. O tema deve ser ponderado, sem dúvida, até porque há muito a fazer e a melhorar nas políticas de imigração. Mas nunca em moldes simplistas ou com base em juízos apressados.
Tudo isto já para não dizer que as perguntas passam por cima da enorme complexidade do tema da imigração, o qual nunca deveria poder ser condensado em perguntas de sim ou não. O tema deve ser ponderado, sem dúvida, até porque há muito a fazer e a melhorar nas políticas de imigração. Mas nunca em moldes simplistas ou com base em juízos apressados.
Tal como nos explica a neurociência, se nem no nosso cérebro as nossas amígdala e ínsula têm a palavra final no nosso juízo (uma vez que o córtex pré-frontal desempenha um papel importante no controlo do raciocínio e do comportamento), também em sociedade não devemos permitir que estes instintos possam levar a melhor, sem serem colocados sob a lente de valores que reputamos mais elevados. Kant, no século XVIII ensinava sabiamente, nas suas aulas sobre ética que “as leis morais nunca devem basear-se na fraqueza humana”. Toda a evolução do Estado moderno é feita aliás em torno desta ideia. Prova disso mesmo é o reconhecimento de direitos fundamentais de forma a criar espaços de liberdade e deveres públicos de atuação independentes da pertença a um grupo específico e com força suficiente para serem impostos – se necessário for – contra maiorias que se formem na sociedade.
Deveria ser claro para todos que os deveres que temos uns para com os outros não podem, nem devem ficar dependentes de impulsos irracionais (com um enorme potencial de manipulação) de um “nós” que facilmente se dispõe a sacrificar os “outros” que não pertencem ao grupo.
Mais do que assentar em instintos primitivos, o cuidado para com os “outros” deve ser assumido como uma “dívida de honra”, ainda usando a terminologia de Kant. Numa sociedade assente na dignidade humana, a sorte dos “outros” não pode ficar à mercê de instintos que enviesam a nossa maneira de ver ou julgar, impedindo um juízo cuidado, rigoroso e imparcial dos interesses em causa. Todas as políticas públicas que digam respeito a pessoas devem assentar exclusivamente em considerações éticas, deveres de justiça e no reconhecimento de direitos fundamentais e humanos. Todos os caminhos que abrem a porta à irracionalidade e à manipulação fácil devem ser categoricamente vedados.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.