Quem são estes 3?

Georges Best, Paul Florensky, um pequeno mistério, com uma pequena lição sobre ícones, … e um desenlace muito bom!

Georges Best, Paul Florensky, um pequeno mistério, com uma pequena lição sobre ícones, … e um desenlace muito bom!

1. Como mel para a boca 

 

Antes de M’Bappé – Cavani – Neymar no PSG ou de Messi – Griezmann – Suarez no Barça, já tinha havido um trio mítico no Manchester United ⚽ : Georges Best – Bobby Charlton – Denis Law. Nos anos 60, eram mesmo chamados  «a Trindade Santa».

Ora, é precisamente do primeiro trio da história da Humanidade que lhe queremos falar hoje….

2. Um texto bíblico

O SENHOR apareceu a Abraão junto dos carvalhos de Mambré, quando ele estava sentado à porta da sua tenda, durante as horas quentes do dia. Abraão ergueu os olhos e viu três homens de pé em frente dele. Imediatamente correu da entrada da tenda ao seu encontro, prostrou-se por terra e disse:

– Meu Senhor, se mereci o teu favor, peço-te que não passes adiante, sem parar em casa do teu servo. Permite que se traga um pouco de água para vos lavar os pés; e descansai debaixo desta árvore. Vou buscar um bocado de pão e, quando as vossas forças estiverem restauradas, prosseguireis o vosso caminho, pois não deve ser em vão que passastes junto do vosso servo.

Eles responderam:

– Faz como disseste.

Abraão foi, sem perda de tempo, à tenda onde se encontrava Sara e disse-lhe:

– Depressa, amassa já três medidas de flor de farinha e coze uns pães no borralho.

Correu ao rebanho, escolheu um vitelo dos mais tenros e gordos e entregou-o ao servo, que imediatamente o preparou. Tomou manteiga, leite e o vitelo já pronto e colocou-o diante deles. E ficou de pé junto dos estranhos, debaixo da árvore, enquanto eles comiam.
(Gn 18, 1-8)

3. O esclarecimento 

Um ou três?
Um problema gigante surge-nos logo no início do texto:

  • Versículo 1: fala-se de YHWH que vem ao encontro de Abraão. Este último encontra-se, então, com Deus, de quem a Bíblia sublinha constantemente a UNIDADE.
  • Versículos 2 e 3: é-nos dito que Abraão viu três homens, a quem chama… “Senhor”! Quer dizer: vê três pessoas, mas dirige-se apenas a uma: «Meu Senhor, se mereci o teu favor, peço-te que não passes adiante, sem parar em casa do teu servo.»
  • Versículo 4: Abraão volta ao plural – «para vos lavar os pés»

Nota: A possibilidade de usar o vos em português dirigindo-nos de forma respeitosa a apenas uma pessoa, não impede de sublinhar este contraste e por isso podemos perguntar:

Afinal, Abraão vê o Deus único, ou vê as Três Pessoas?

Os Padres da Igreja regalaram-se com este paradoxo! Lêem este texto como uma das revelações do Deus Trino, UM na Sua essência divina, mas revelado em TRÊS pessoas – o Pai, o Filho e o Espírito Santo,  prefigurados aqui por estes três homens.

 

Um ícone muito conhecido
Esta passagem bíblica dos três anjos, interpretada como uma manifestação da Trindade, inspirou o pintor Andreï Roublev num dos ícones mais célebres do mundo (e, sem dúvida, o mais reproduzido!

De certeza que já o viu nalgum sítio, mesmo que já se tenha esquecido… A arte do ícone recorre a diferentes símbolos que vamos descodificar consigo…

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Andreï Roublev (1360-1427), A Trindade (têmpera, 1411-1425), Galeria Tretiakov, Moscovo.

 

Através dos olhos de Abraão 

Surpreendentemente, Abraão não aparece representado neste ícone. Só vemos os três anjos. Roublev (ou Santo André, o iconógrafo) coloca assim qualquer pessoa que contemple o ícone no lugar de Abraão. O que o espectador vê foi o que viu Abraão.

No ícone, os três anjos são muito parecidos: cabelos iguais, olhos e bocas iguais!

Deste modo, Roublev simboliza a unidade da Trindade: quando vemos uma das Pessoas da Trindade, vemos a Trindade inteira. É a lição mais importante deste ícone.

Tudo o resto não passa de simples conjeturas: tentaremos identificar cada uma das Pessoas da Trindade no ícone, mas com prudência, porque o próprio Iconógrafo preferiu não o fazer. Apesar disso, deixou umas quantas pistas que nos permitem levantar algumas hipóteses…

À esquerda, poderíamos reconhecer o Pai

  • Revestido de um manto dourado que manifesta a sua eternidade.
  • Os outro dois têm os olhos fixos nele.

Poderíamos então reconhecer os Pai pela cor das vestes e pelo olhar das outras duas personagem. É d’Ele que procedem o Filho e o Espírito Santo.

Cristo está ao centro
É a personagem que vemos primeiro e, no entanto, o seu olhar conduz-nos ao Pai. Mas de que maneira é que Roublev sugere que se trata do Filho?

1. Pelas suas vestes, vermelha e azul, com uma risca dourada.

  • O azul, cor celeste por excelência, manifesta a divindade do Filho.
  • O vermelho relembra o sangue que se derrama na Cruz e remete ao mesmo tempo para a humanidade e para a Paixão do Filho, incarnado em Jesus Cristo. A árvore, por trás dele, poderia também simbolizar a madeira da cruz.
  • Por fim, este vermelho está atravessado pela cor dourada no ombro direito, como que a sugerir que a eternidade atravessa a humanidade de Cristo

2. Pela forma como os seus dedos estão pousados na mesa — não, não é um “v de vitória” como no desporto!…

  • Cristo tem duas naturezas: humana e divina.
  • Através da sua humanidade, podemos descobrir a divindade. O Filho incarnado conduz o nosso olhar para o Pai, que está à Sua direita…

À direita, o Espírito Santo

Por fim, mais à direita, poderíamos entrever o Espírito Santo que, como o Filho, olha para o Pai, de Quem procede.

Mas, como lembra Mikhaïl Alpatov : “o problema da iconografia de saber qual das hipóstases da Trindade aparece em cada uma das figuras não é de forma nenhuma a chave de compreensão deste ícone. O desafio não está tanto em mostrar as diferenças, mas em provar a unidade espiritual. O espírito encontra um prazer especial em contemplar as coisas no seu conjunto e captar as ideias que estão mais além de cada objeto, sem perder nada da beleza e do charme do conjunto.”*.

(Kurt Weitzmann, Mikhaïl Alpatov et collectif, Les Icônes, Fernand Nathan, 1981, p. 246)

Inversão de perspetiva
Ao contrário da arte clássica, a arte iconográfica inverte a perspetiva. O ponto de fuga do quadro, para o qual convergem os diferentes traços, não se situa no centro da obra, mas no exterior, à frente dela. Por exemplo aqui, os pontos de fuga estão marcados pelo posicionamento dos pés das personagens, de fora para dentro, orientados na direção daquele ou daquela que contempla o ícone.

 

Qual é o sentido desta inversão de perspetiva?

Não se trata, para o observador do quadro, de fugir do mundo para submergir o olhar na obra de arte. Trata-se antes de que o mundo receba e se deixe invadir pelo que o ícone lhe revela.

E o que o ícone mostra é a imensa ternura dos olhares e das expressões faciais das três Pessoas. Uma ternura burilada por Roublev para mostrar, àquele que contempla, a comunhão do Deus Trindade, fazendo eco do Salmo 89 :

«A ternura do Senhor visita-nos e ensina-nos».

 

4. Uma palavra final

Paul Florensky, antes de ser deportado para o arquipélago das Solovki pelo regime soviético e de ser assassinado perto de Leninegrado e lançado a uma vala comum, foi um dos mais prolíficos e brilhantes espíritos do século XX. O inventor, matemático, teólogo, filósofo e padre ortodoxo casado falava assim do ícone de Roublev:

«De todas as provas filosóficas da existência de Deus, a mais convincente é precisamente aquela de que não se fala nos manuais. Podemos chegar a ela por dedução: ‘A Trindade de Roublev existe, logo, Deus existe.”

(Citado por Véra TRAIMOND, La peinture de la Russie ancienne, Bernard Giovanangeli, Éditeur à Paris, 2010.)

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.


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