Na carta dirigida ao Povo de Deus, o Papa Francisco declara que «é impossível imaginar uma conversão do agir eclesial sem a participação ativa de todos os membros do Povo de Deus» (20.08.2018). Recupero esta afirmação num contexto similar ao que motivou esta carta, um relatório que detalha o que viveram pessoas vítimas de abuso sexual, de poder e de consciência. Se é certo que o nosso olhar se volta para o que vai fazer a Igreja, é muito importante que todo o Povo de Deus seja chamado a participar num processo de renovação da Igreja que se adivinha exigente, doloroso, mas necessário. De facto, é importante salientar que se de um modo geral, se reconhece que caiu sobre os ombros dos responsáveis hierárquicos a resolução das questões do passado, também não se pode exigir que sejam unicamente eles a desenhar o futuro. Esta situação reclama a ousadia não só de pensar o exercício do ministério episcopal, muitíssimas vezes concentrado num único indivíduo, com todas as implicações psicológicas que acarreta, como envolver todo o Povo de Deus num processo de reforma da Igreja.
O decreto conciliar Christus Dominus reclama que os Bispos «respeitem o papel que pertence aos seus fiéis nas coisas da Igreja, reconhecendo-lhes também a obrigação e o direito de colaborarem ativamente na edificação do Corpo Místico de Cristo» (n. 16). Respeitar este direito dos fiéis implica um processo de escuta e acompanhamento de todos os que quiserem ser corresponsáveis na construção de um futuro melhor para a Igreja e para a sociedade. Dentro deste grupo estão, em primeiro lugar, as vítimas de abuso que devem ser ouvidas, acompanhadas e ressarcidas nos seus direitos. Elas podem ajudar a Igreja a examinar-se e a pôr-se no seu lugar. A sua voz autorizada por estruturas de apoio confiáveis pode permitir à Igreja compreender as consequências nefastas do sistema de silenciamento das vítimas que vigorou durante décadas. Em segundo lugar, a Igreja não deve negligenciar o acompanhamento dos agressores, proporcionando-lhes não o destino de Judas, mas o olhar exigente e compassivo que Jesus dirigiu a Pedro (cf. Mt 27,5; Mc 14,72). Ajudá-los a aceitar o próprio fracasso, a reconhecer o pecado e a enveredar por caminhos de cura será um grande passo face à cultura do «care your self» que tem vigorado até agora. A própria aplicação da justiça, quando ela é devida, tem um efeito reparador não só para as vítimas, como para os agressores.
Esta situação reclama a ousadia não só de pensar o exercício do ministério episcopal, muitíssimas vezes concentrado num único indivíduo, com todas as implicações psicológicas que acarreta, como envolver todo o Povo de Deus num processo de reforma da Igreja.
Em terceiro lugar, estão todos os homens e mulheres de boa vontade que, com os seus conhecimentos e experiência podem contribuir na definição e implementação de medidas concretas que previnam todo e qualquer tipo de abusos. Neste grupo estão também aqueles cristãos comuns que se sentem envergonhados e que anseiam por poder fazer ouvir a sua voz. Não pode ser excluída ajuda dos fiéis leigos, onde o Espírito Santo fala, num processo de decisão que os implica diretamente.
Como reconheceu o Sínodo sobre os jovens, «enfrentar a questão dos abusos em todos os seus aspetos também com a preciosa ajuda dos jovens, pode ser deveras uma oportunidade para uma reforma de âmbito epocal» (Documento final, 31). Seria bom que a leitura do relatório da Comissão Independente para o estudo dos abusos sexuais de crianças na Igreja levasse a um caminho sinodal que implicasse toda a Igreja, de modo que ninguém fique sozinho!
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.