Que Europa é esta?

A liberdade de consciência envolve o domínio mais íntimo e existencialmente relevante de qualquer pessoa. Pode dizer-se que a importância da sua proteção só é suplantada pela proteção do direito à vida.

A liberdade de consciência envolve o domínio mais íntimo e existencialmente relevante de qualquer pessoa. Pode dizer-se que a importância da sua proteção só é suplantada pela proteção do direito à vida.

Soubemos há dias que foi dado um passo decisivo para a beatificação de Robert Schuman, um dos “pais” da União Europeia evocado precisamente no local onde se situam hoje em Bruxelas as suas principais instalações. Foram reconhecidas as virtudes heroicas deste político que passa, assim, a ter o título de “venerável”.

Robert Schuman lutou por uma Europa fiel às raízes cristãs da sua cultura, alicerçada no respeito pela dignidade da pessoa humana e nos seus direitos fundamentais. Não reconheceria, certamente, essa Europa na recentemente aprovada Resolução do Parlamento Europeu sobre a «situação da saúde e direitos sexuais e reprodutivos na União Europeia» (baseada no relatório Matic), que por muitos é hoje apresentada como expressão dos “valores europeus”.

Essa Resolução declara o aborto a pedido como direito humano fundamental e a sua proibição como violência contra a mulher. Pugna (no considerando U e no ponto 34) pela eliminação de todos os obstáculos que, até nas legislações mais permissivas, dificultam o exercício desse pretenso direito: prazos, períodos de espera, aconselhamentos obrigatórios (considerados “preconceituosos” – a alusão poderá ser relativa ao sistema alemão).

A questão da legalização do aborto extravasa do âmbito das atribuições da União Europeia. É matéria que cabe aos Estados membros (como, além do mais, foi reafirmado no Tratado de adesão de Malta, país onde o aborto continua a ser proibido).

Por outro lado, o direito internacional não reconhece um direito ao aborto. Nas Conferências de Pequim (de 1994) e do Cairo (2014), também graças à intervenção da delegação da Santa Sé, foi rejeitada a inclusão do aborto entre os serviços de “saúde sexual e reprodutiva”. Nem o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, nem o Tribunal de Justiça da União Europeia alguma vez afirmaram esse pretenso direito ao aborto.

Os países da União Europeia que legalizaram o aborto (quase todos) nunca o elevaram a direito fundamental garantido pela Constituição.

O direito à vida é o primeiro dos direitos, pressuposto de todos os outros. A sua proteção é particularmente necessária quando estão em causa as vidas mais vulneráveis, como são as dos nascituros. O aborto atenta contra esse primeiro direito fundamental, não pode ser, ele próprio, configurado como um direito humano. Os direitos das mulheres não podem ser concebidos por oposição ao direito à vida dos nascituros. Exigem, sim, o apoio à maternidade, em especial nas situações de abandono e pobreza.

Embora admita a possibilidade de exercício da objeção de consciência (no ponto 35), afirma que esse exercício não pode sobrepor-se ao pretenso direito de acesso ao aborto.

Mas o que desta Resolução mais tem suscitado indignação é a sua declaração de oposição ao exercício da objeção de consciência dos profissionais de saúde em relação à prática do aborto. Isto porque em quase todos os países da União Europeia (as exceções são Malta e a Polónia) vigoram já leis mais ou menos permissivas da prática do aborto. Mas todos eles (à exceção da Suécia) reconhecem o direito de objeção de consciência dos profissionais de saúde perante essa prática.

A liberdade de consciência envolve o domínio mais íntimo e existencialmente relevante de qualquer pessoa. Pode dizer-se que a importância da sua proteção só é suplantada pela proteção do direito à vida.

A objeção de consciência, corolário da liberdade de consciência como direito fundamental, tem apoio na Convenção Europeia dos Direitos Humanos (no seu artigo 9.º) e na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (no seu artigo 10.º, n.º 2). Entre nós, está consagrada no artigo 41.º, n.º 6, da Constituição e no artigo 12.º da Lei da Liberdade Religiosa (Lei cujo vigésimo aniversário foi há pouco comemorado)

A Resolução (no considerando U e nos pontos 34 e 37) lamenta que “a chamada cláusula de consciência”, de profissionais de saúde individualmente e de instituições de saúde privadas, dificulte a prática do aborto. Embora admita a possibilidade de exercício da objeção de consciência (no ponto 35), afirma que esse exercício não pode sobrepor-se ao pretenso direito de acesso ao aborto.

No entanto, como vimos a liberdade de consciência tem, no direito internacional e nos direitos da generalidade dos países da União Europeia, uma força jurídica que não tem esse pretenso direito de acesso ao aborto.

A forma algo displicente e pejorativa como a Resolução designa “a chamada cláusula de consciência” suscitou a indignação do eurodeputado francês François-Xavier Bellamy, que evocou a propósito símbolos marcantes do valor da liberdade de consciência na história e cultura europeias; a Antígona de Sófocles, o julgamento de Sócrates e a resistência aos totalitarismos nazi e comunista (ver www.famillechrétienne.fr, 24/6/2021).

Um outro aspeto criticável (nem todos o serão) desta Resolução é o da tentativa de imposição da ideologia do género que é levada até às últimas consequências. Como esta, que consta do seu considerando N: «em determinadas circunstâncias, os homens transgénero e as pessoas não binárias também podem engravidar, devendo, nesses casos, beneficiar de medidas em matéria de cuidados relacionados com a gravidez e o parto sem discriminação com base na sua identidade de género». Estamos perante um extremismo ideológico cego (como todos os extremismos ideológicos) diante da realidade objetiva e do mais elementar senso comum.

Para além destas objeções éticas e jurídicas (sendo certo que, de qualquer modo, ela tem relevo político, mas não força jurídica vinculativa), importa salientar um outro alcance nefasto que pode ter esta Resolução. Esse efeito será o de contribuir para afastar muitos cidadãos de um projeto de unidade europeia que identificam com valores ligados às raízes cristãs da cultura europeia (aquele projeto por que lutou Robert Schuman). Se, afinal, entre os pretensos “valores europeus” se inclui a legalização do aborto, a negação da liberdade de consciência e a imposição da ideologia do género, é de temer que muitos europeus deixem de se identificar com esses pretensos valores e, reflexamente, com o projeto de unidade europeia. Há que pensar nisso precisamente numa altura em que, com o lançamento da Convenção sobre o Futuro da Europa, se pretende aproximar os cidadãos europeus do projeto de unidade europeia, do qual muitos estão cada vez mais afastados.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.