Quando a prostituição parece uma escolha

Para muitas mulheres, prostituir-se é o culminar de um percurso de vulnerabilidade e exclusão associado à pobreza, onde escasseiam as oportunidades e alternativas diferentes. Irmãs Adoradoras acompanham estas mulheres em Coimbra.

Para muitas mulheres, prostituir-se é o culminar de um percurso de vulnerabilidade e exclusão associado à pobreza, onde escasseiam as oportunidades e alternativas diferentes. Irmãs Adoradoras acompanham estas mulheres em Coimbra.

O tema «prostituição» tem estado na ordem do dia das nossas conversas e discussões, devido a uma petição que deu entrada na Assembleia da República para a sua «legalização» em Portugal (onde na verdade não é ilegal), associada ao «pedido de despenalização do lenocínio desde que seja sem coação». Creio que é muito positivo que nos dediquemos a refletir sobre este tema que, sendo tão real e estando tão presente nas nossas sociedades, tem estado entregue à sua «autogestão», devido à nossa desconsideração e aparente desinteresse, como se o facto de não lhe dedicarmos atenção e reflexão fizesse dele um tema de menor
gravidade, atenuasse as suas consequências e, consequentemente, as nossas consciências.

Efetivamente, a prostituição existe – todos o sabemos – tem uma expressão considerável no nosso país, tem a ver connosco e interfere com as nossas vidas: com as nossas «feridas» emocionais e relacionais, põe a descoberto lacunas a nível da educação, na família e na escola, tem efeitos prejudiciais na estrutura psicoemocional e espiritual de quem a exerce e de quem «a consome».

Vivemos num mundo globalizado, com desigualdades acentuadas e graves situações de pobreza estrutural, resultantes de fatores e políticas socioeconómicas que favorecem o capitalismo. Pessoas que se encontram em situação de extrema pobreza arriscam a vida, gastam todas as suas poupanças e endividam-se para imigrar ilegalmente para países desenvolvidos, à procura de um sonho e de melhores condições de vida. Na maioria dos países europeus, a prostituição é exercida por pessoas estrangeiras, sendo que, grande parte delas, nunca a tinham exercido nos países de origem. As leis anti-imigração dos países mais desenvolvidos não permitem ou dificultam excessivamente a regularização e legalização destas pessoas, deixando-as à mercê de redes e grupos de exploração.

A prostituição existe – todos o sabemos – tem uma expressão considerável no nosso país, tem a ver connosco e interfere com as nossas vidas: com as nossas «feridas» emocionais e relacionais, põe a descoberto lacunas a nível da educação, na família e na escola, tem efeitos prejudiciais na estrutura psicoemocional e espiritual de quem a exerce e de quem «a consome».

Há expressões que conhecemos e talvez já tenhamos usado a propósito deste tema: «é a profissão mais antiga do mundo; nunca vai deixar de existir»; «é dinheiro fácil»; «estão lá porque querem»… Criar opinião com o objetivo de decidir implica olhar esta questão por dentro: perguntarmo-nos pelas pessoas que a exercem, as suas histórias e percursos de vida, a situação real em que se encontram, a sua rede de suporte
na família e na comunidade. Mas, também, perguntar quem são os «consumidores», os clientes, o que é que realmente buscam nesta procura, como olham a pessoa que prostituem e que nível de responsabilidade e implicação têm (ou estão dispostos a ter) para com a sua situação e o seu percurso de vida.

Fomos criados à imagem e semelhança de Deus (Cf. Gn 1, 26) e o nosso «corpo é templo do Espírito Santo» que nos habita (Cf. 1 Cor 6, 19). Diante de cada pessoa estamos chamados a encontrarmo-nos e a reconhecer esse mistério que a habita e que faz dela «terra sagrada» e alvo do cuidado, da preocupação e da ternura de Deus, que «escuta o clamor do seu povo», se comove até às entranhas e envia a quem o possalibertar (Cf. Ex 3, 5.7-10).

A prostituição é uma grave violação da dignidade e uma forma de violência contra a integridade da pessoa. Na prostituição, a mulher é alienada, reduzida a objeto, «mercadoria» que se compra, usa, consome, explora e vende. A Organização Mundial de Saúde, juntamente com a Associação Mundial de Sexualidade, na Declaração dos Direitos Sexuais, refere como 1.º «O direito à liberdade sexual, que diz respeito à possibilidade de os indivíduos expressarem o seu potencial sexual, excluindo-se todas as formas de coerção, exploração e abuso em qualquer época ou situação de vida».

A prostituição é uma violência sexual porque é uma atividade que põe em risco a saúde física, psíquica e espiritual de quem se prostitui, verificando-se nesta população uma taxa de mortalidade acima da média. A Constituição Portuguesa refere que «a dignidade do ser humano deve ser entendida como um valor autónomo e específico que exige respeito e proteção», referindo no artigo 1.º que “Portugal é uma República soberana baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre justa e solidária”.

A Congregação Religiosa das Irmãs Adoradoras tem desenvolvido projetos de intervenção e acompanhamento a mulheres em situação de extrema vulnerabilidade, exploração sexual, violência e vítimas de tráfico humano, em vários países de quatro continentes. Em Portugal, esta presença data de 1936 e, desde 2009, leva a cabo o projeto ERGUE-TE, no distrito de Coimbra, que tem por missão ir ao encontro
especialmente da mulher em situação de prostituição, acompanhar e promover a sua dignificação e a sua inserção social e laboral, com o objetivo de – com cada uma e ao seu ritmo – ir criando condições para novos projetos de vida.

Na maioria dos casos e em todas as situações acompanhadas, a prostituição é mais uma consequência do que uma escolha: naquela situação e urgência do momento, essa foi a única saída.

Da experiência de mais de 160 anos de missão junto destas mulheres, a Congregação tem constatado que o exercício da prática da prostituição é o culminar de um percurso de vulnerabilidade e exclusão associado à pobreza, onde escasseiam as oportunidades e alternativas diferentes, ou à falta de condições pessoais e do contexto para as escolher e perseverar nelas. Na maioria dos casos e em todas as situações acompanhadas, a prostituição é mais uma consequência do que uma escolha: naquela situação e urgência do momento, essa foi a única saída.

A baixa escolaridade associada à proveniência de famílias desestruturadas, onde o sustento esteve sempre a cargo das mulheres que muitas vezes se encontram sozinhas com filhos a cargo, são fatores determinantes. O entrar com a intenção de que o fará algumas vezes ou por pouco tempo, até ficar refém de um emaranhado de «teias» que condicionam e aprisionam, está à distância de efetivar o passo.

Pensarmos este tema na perspetiva da «despenalização de lenocínio desde que seja sem coação», não garante, por si só, que quem se prostitui o faça como uma escolha livre, consciente e esclarecida, porque, na esmagadora maioria dos casos e situações, essa é a única solução para estas mulheres. O que invalida a hipótese de eleição. Carecemos de políticas efetivas de apoio para criar alternativas a situações de pobreza e exclusão que empurram as pessoas para as «franjas» da nossa sociedade. Carecemos de programas que possibilitem a saída efetiva do «sistema» da prostituição. Precisamos de mais responsabilidade social e individual para estarmos mais atentos aos que ficam «à margem». Precisamos de maior consciencialização na educação para que esta promova comportamentos de igualdade, responsabilidade e respeito, na família e na escola. Precisamos… e podem-nos ocorrer tantas ideias como caminhos possíveis para que haja mais igualdade de oportunidades e mais justiça social… Talvez haja todo um caminho prévio a fazer antes de nos (pre)ocuparmos em legislar para «legalizar»

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.