O P. Vitaliy Osmoloskyy é ucraniano e é jesuíta. Estava nos Estados Unidos a fazer um doutoramento quando rebentou a guerra na Ucrânia, a 24 de fevereiro de 2022. Foi chamado e imediatamente regressou ao seu país para estar com o seu povo. O facto de ter dupla nacionalidade (ucraniana e polaca) mostrou-se de uma enorme importância, uma vez que, ao longo dos meses, muitos milhares de ucranianos fugiram para a Polónia, encontrando-se agora o país a braços com cerca de quatro milhões de pessoas. Aí contribuiu para a resposta da Companhia de Jesus no apoio aos refugiados que fugiam da guerra – através da criação de uma delegação do Jesuit Refugee Service (JRS), em Varsóvia – e também ajudando os combatentes ucranianos na linha da frente.
Em março, o jesuíta ucraniano conheceu, nas instalações dos jesuítas em Varsóvia, um grupo de portugueses, alguns dos quais ligados à Companhia de Jesus, que aí pernoitavam após uma viagem que tinha por objetivo entregar mantimentos e trazer refugiados para Portugal. Desde então, mantiveram uma estreita relação de colaboração com o P. Vitaliy Osmoloskyy que tem consistido no envio de bens de primeira necessidade para a Polónia, para serem distribuídos pelos refugiados que aí se encontram e pelas pessoas que mais necessitam na Ucrânia.
No início de janeiro, o P. Vitaliy veio a Portugal, mais concretamente a Fátima, para acompanhar os seus pais, que, à semelhança do povo ucraniano, são profundamente devotos de Nossa Senhora. Aproveitando a presença do jesuíta ucraniano em Portugal, a Paróquia da Encarnação (Lisboa), confiada à Companhia de Jesus, e a paróquia de Nossa Senhora Senhora da Conceição, no Rato, que promoviam desde dezembro a campanha de angariação de bens “Natal na Ucrânia”, convidaram o sacerdote a participar na eucaristia dominical e a dar o testemunho da situação vivida na Ucrânia e do apoio dado aos refugiados.
Foi nessa ocasião e através desse grupo de portugueses que o Ponto SJ chegou à fala com o P. Vitaliy e que foi possível esta entrevista.
Ponto SJ: O P. Vitaliy é jesuíta, mas antes disso é ucraniano. Dez meses depois do início da guerra, como se sente em relação ao que está a acontecer?
P. Vitaliy Osmoloskyy: Primeiro que tudo gostaria de dizer que estou muito contente por estar aqui e por partilhar convosco a minha gratidão. Vim a Portugal com os meus pais, como peregrino, para rezar em Fátima, pela paz, pois Nossa Senhora de Fátima é muito importante para nós e tem uma grande devoção na Ucrânia.
Para mim, ser jesuíta é muito simples, significa ser humano. Por isso, se for capaz de ser humano através do instrumento que é ser jesuíta é um milagre em termos de vocação e chamamento. E isto também se aplica a outras profissões e estilos de vida.
A situação dez meses depois da guerra ter começado na Ucrânia é a de uma sociedade em processo de mudança e de nascimento. É um tempo em que vemos como uma nova nação nasce para si mesma, e para o seu futuro. É um tempo em que, não só na Ucrânia mas também na Europa, muitas instituições, políticos, e nações têm de rever os seus valores. Neste tempo vemos também que o trabalho das organizações internacionais não funciona. É um tempo de extremos. Na Ucrânia as pessoas lutam pela vida, enquanto que na Europa ocidental as pessoas pensam em qualidade de vida.
É um tempo de extremos. Na Ucrânia as pessoas lutam pela vida, enquanto que na Europa ocidental as pessoas pensam em qualidade de vida.
Ponto SJ: No princípio da guerra foi criado o projeto Jesuítas pela Ucrânia, da parte da província polaca da Companhia de Jesus, para coordenar os esforços e ajudas para chegar à Ucrânia. Vocês enviam ajuda para território ucraniano, mas também fornecem apoio aos refugiados ucranianos que chegam à Polónia. Que tipo de trabalho têm nestas duas linhas de atuação?
P. Vitaliy Osmoloskyy: Penso que um dos nossos maiores sucessos foi a criação de um JRS na Polónia. Agora temos um escritório principal em Varsóvia e outros três escritórios regionais. Podemos organizar e distribuir mais ajuda não só à Ucrânia, através do JRS que aí foi fundado em 2008, mas também dentro da Polónia.
Para mostrar o que é importante para o JRS e para nós, eu diria que a vida é importante, mas a qualidade de vida é ainda mais importante. Agora, não estou a falar de benefícios e luxos, mas do significado e do valor da vida. Não chega manter a vida. O que é necessário é tomar conta da vida, e isso significa, quando estamos a ajudar os nossos vizinhos ou até a nós próprios, viver em condições de paz, de amor e de misericórdia. Isto é que é “qualidade de vida”.
Ponto SJ: Como é que os refugiados ucranianos vivem atualmente na Polónia? Quais são as suas principais necessidades?
P. Vitaliy Osmoloskyy: A sociedade ucraniana já era muito próxima do contexto polaco, o que é algo que já vem da História. Por isso, quando os refugiados ucranianos fugiram para a Polónia, a primeira coisa que queriam era aprender a língua, a cultura, as tradições e encontrar um trabalho. Arranjar um trabalho é a primeira coisa que querem porque se tiverem um trabalho podem arranjar condições para ter uma casa, um quarto. Agora o desafio é encontrarem um espaço para alugar, pois, oficialmente, temos 4 milhões de pessoas na Polónia, a maioria mulheres e crianças. É difícil as mães encontrarem um emprego quando têm crianças pequenas, por isso, elas têm um esquema de cooperação: uma mãe toma conta de três crianças e as outras trabalham e depois trocam. Estão a criar esta cooperação que pode ser replicada para poderem trabalhar e estar com os seus filhos. A criatividade destas pessoas e a forma como organizam a sua vida é espantosa. O principal problema é arranjar uma casa para alugar.
Ponto SJ: Quantos refugiados ucranianos estão em Varsóvia?
P. Vitaliy Osmoloskyy: Não estão só em Varsóvia, mas no país todo e não são só refugiados ucranianos. A Polónia é um país muito atrativo para outros países, por isso temos muitas pessoas que vieram da Índia, China, Bangladesh, Geórgia, etc. A economia continua a crescer na Polónia, enquanto há uma estagnação no resto da Europa. Por isso, há muita gente a vir para cá.
Ponto SJ: E quando cruza a fronteira para o lado de lá o que vê? Pode descrever-nos essa experiência?
P. Vitaliy Osmoloskyy: Um dos momentos mais tocantes foi quando os homens e maridos estavam a trazer as mulheres, os filhos e as irmãs para a fronteira, e aí se despediam. Os homens voltavam para lutar e proteger as cidades e as mulheres e crianças viajavam, até para países do Norte. Tivemos muitas propostas para irem para muitos países como Holanda, Espanha, Portugal, França. E essas pessoas nem sequer sabiam a língua. Os momentos mais tocantes foram esses porque sabemos que muitos deles nunca mais se voltarão a ver na vida.
Ponto SJ: Contou-nos que quando estava na Ucrânia também administrou sacramentos às pessoas que estavam na zona de guerra. Como é que se lida com estas situações em circunstâncias tão dramáticas?
P. Vitaliy Osmoloskyy: Sim, tenho alguns bons amigos da altura dos meus tempos de estudante na Ucrânia que estão no serviço militar e na linha da frente do combate. E quando tinham uma ordem para lutar, alguns ligaram-me ou vieram ter comigo para lhes dar uma bênção, para rezar por eles, e para tomar conta das suas famílias, se algo lhes acontecesse. Esses momentos foram muito difíceis, e claro que sou humano, mas tentava não mostrar as minhas emoções e sentimentos. Tentava ser próximo, calmo e delicado e não mostrar muita emoção. Até porque na cultura deles quando um homem chora significa que é fraco. Eles tentavam não chorar em frente às mulheres e filhos. Pessoalmente, eu penso que é uma má ideia porque só os homens fortes e corajosos conseguem chorar e não é vergonha nenhuma mostrar isso. Mas faz parte da nossa cultura.
Ponto SJ: Na televisão, vemos a guerra e a destruição. Mas no terreno, como é que os ucranianos se sentem? Sentem raiva, esperança ou resignação?
P. Vitaliy Osmoloskyy: A maioria sente raiva e isso é normal, faz parte, é um sentimento. Mas é no desejo de fazer mal, magoar, ferir, que está o pior problema. É preciso ter também vozes de reconciliação e de construção da paz, principalmente da parte do Vaticano. Em março, eu falava disso no encontro internacional de coordenadores e dizia que não é o momento de construir a paz ou reconciliação. Isso é um processo de misericórdia. Primeiro, precisamos que o agressor peça perdão e precisamos de tempo porque se trata de uma ferida. Primeiro temos de cuidar das feridas e só depois disso podemos falar de reconciliação. Costumo dizer que seria a mesma coisa do que dizer aos judeus em 1943 ou 1944: “perdoem os vossos inimigos”. Não é o momento para isso. Diria que a raiva é o primeiro sentimento e depois a desilusão, principalmente porque vemos estes políticos tão fracos na Europa… Isso encoraja as pessoas a fazerem apenas o que depende de si e a não ficarem apenas à espera da ajuda dos países europeus. Eu digo isto muitas vezes, não podemos ficar à espera da ajuda, temos de lutar por nós próprios.
Um dos momentos mais tocantes foi quando os homens e maridos estavam a trazer as mulheres, os filhos e as irmãs para a fronteira, e aí se despediam.
Ponto SJ: Vemos muita resiliência nos ucranianos, que lutam, defendem o que é seu, e isso é algo que nos impressiona, este tipo de comportamento. Onde é que essas pessoas encontram força?
P. Vitaliy Osmoloskyy: Tenho uma imagem que pode ajudar, a de um cavalo jovem. Primeiro, quando o pomos no campo, ele não sabe o que fazer, como trabalhar, mas quando percebe o seu poder, é fantástico, ele salta, corre, tem uma beleza e força enorme. Para mim, este exemplo ilustra bem a nação ucraniana. Todos os dias estamos a aperceber-nos do nosso poder e da nossa riqueza, a nossa singularidade enquanto nação. Precisamos de ajuda, mas também podemos ajudar-nos uns aos outros, e mesmo durante esta guerra, também ajudamos outros países que passam mal em África ou no Médio Oriente. Parece estranho, mas é assim.
Ponto SJ: Referiu numa entrevista que a única coisa palpável que se vê na Ucrânia é destruição. Como é possível ver o Evangelho no terreno e onde é que encontra uma réstia de esperança?
P. Vitaliy Osmoloskyy: Isso é muito pessoal. Claro que a fé é importante, mas diria que a espiritualidade é mais importante. Nós temos a religião, é uma coisa externa, (direitos, linguagem, edifícios) mas também temos fé, pedimos a Deus “revela-te a nós”. E quando tenho uma revelação, tenho uma relação íntima com Deus. (E quando digo Deus não significa o Deus católico ou ortodoxo, é universal). Muitas pessoas têm como fonte Deus e a espiritualidade, mas nem todos têm ajudas como aquelas que nós temos vindo a receber de outras pessoas, de outros países.
É curioso, pois quando recebemos um grupo de mulheres e crianças refugiadas da Ucrânia e dizemos “aqui têm os vossos quartos, a cantina para comer, etc”. E elas sentam-se e perguntam: “O que temos de fazer?” E nós: “Como o que fazer? Aproveitem, descansem, estão em Varsóvia, vão sair, espairecer”. E quando eles perguntam o que é têm de fazer referem-se a trabalhar. E nós respondemos: “Nada, não têm de fazer nada, nós é que fazemos. Será que podemos limpar o chão para vocês?” E elas respondem: “Claro que não, nem pensar”. Esta é nossa cultura.
É muito encorajador para as pessoas saberem que alguém tem o desejo de as ajudar, de amá-las. Só esse pensamento já faz uma enorme diferença.
Ponto SJ: Que tipo de ajuda tem sido fornecida pelos portugueses?
P. Vitaliy Osmoloskyy: Os portugueses têm dado uma ajuda preciosa. Primeiro, quando conheci o vosso grupo em Varsóvia, para mim foi o contacto com a humanidade. Naquele dia em que falamos no nosso colégio, onde vocês ficaram, e pudemos partilhar informações sobre os refugiados de diferentes culturas, foi fantástico, foi um sinal de humanidade. Um sinal de que há pessoas que se concentram primeiro naquilo que nos une e não naquilo que nos divide. E esse encontro foi o início de uma grande amizade e continuamos em contacto e colaboração, e isso não é apenas para os refugiados que estão na nossa organização – JRS – mas também para os hospitais e paróquias, etc. Agora estou a organizar ajuda para a zona central da Ucrânia onde temos muito mais necessidades do que na zona ocidental. As necessidades maiores agora são geradores e equipamento para combater o frio, e também comida e produtos de higiene.
Ponto SJ: E o que podemos fazer mais para ajudar a Ucrânia, o país e as pessoas?
P. Vitaliy Osmoloskyy: O que vocês fazem já é mais do que suficiente. É muito encorajador para as pessoas saberem que alguém tem o desejo de as ajudar, de amá-las. Só esse pensamento já faz uma enorme diferença. É como quando estamos imenso tempo longe das pessoas que amamos, mas sabemos que estão lá à nossa espera. Abre uma perspetiva diferente. Toda a ajuda conta. Não vou pedir muitas coisas, mas diria que se tiverem oportunidade ajudem.
Ponto SJ: Como e quando antevê o fim da guerra?
P. Vitaliy Osmoloskyy: Temos uma resposta oficial e outra não oficial. Na não oficial eu diria, – porque nós temos algumas fontes que nos vão dando informação – que a vitória da Ucrânia nesta guerra não depende a cem por cento da Ucrânia, depende de outros países. Não quero criar uma teoria da conspiração, mas diria que não é apenas um assunto de um país. O mesmo podemos dizer sobre conflitos mais pequenos que temos na Europa e em campo aberto e no Médio Oriente. Mas, concordo com os especialistas e analistas que dizem que a guerra deverá terminar até ao verão.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.