1. Como mel para a boca
Em The story of Isaac, Leonard Cohen retoma a história do sacrifício de Isaac no contexto da guerra do Vietnam.
2. Um texto bíblico
Há quinze dias atrás, abordámos o tema do sacrifício de Isaac a partir de textos do Corão. Pode ver o texto integral aqui. Esta semana, lemos de novo o relato bíblico, para aprofundarmos o sentido que tem na nossa fé.
Deus pôs Abraão à prova e chamou-o: «Abraão!» Ele respondeu: «Aqui estou.» Deus disse: «Pega no teu filho, no teu único filho, a quem tanto amas, Isaac, e vai à região de Moriá, onde o oferecerás em holocausto, num dos montes que Eu te indicar.»
(…)
Chegados ao sítio que Deus indicara, Abraão construiu um altar, dispôs a lenha, atou Isaac, seu filho, e colocou-o sobre o altar, por cima da lenha. Depois, estendendo a mão, agarrou no cutelo, para degolar o filho. Mas o mensageiro do SENHOR gritou-lhe do céu: «Abraão! Abraão!» Ele respondeu: «Aqui estou.» O mensageiro disse: «Não levantes a tua mão sobre o menino e não lhe faças mal algum, porque sei agora que, na verdade, temes a Deus, visto não me teres recusado o teu único filho.» (Gn 22, 1-2.9-12)
3. O esclarecimento
Por que é que Deus manda a Abraão que sacrifique o seu filho, o seu único filho? Eis uma questão que se terão colocado todos os leitores deste texto. Propomos duas pistas de resposta:
- Uma dada pelos Padres da Igreja,
- Outra que surgiu com a psicanálise, no séc. XX.
Para os Padres da Igreja, Isaac, carregado de lenha, prefigura o Evangelho de João (capítulo 19, versículo 17), onde Jesus é descrito «levando a cruz às costas». O sacrifício de Isaac viria, então, preparar a paixão de Cristo.
Clemente de Alexandria, padre da Igreja do séc. III, escreve: «Isaac […] é a imagem do Senhor: criança e também filho – porque era filho de Abraão, como Cristo é filho de Deus – e vítima como o Senhor. Mas ele não foi imolado, como o Senhor. Isaac limitou-se a carregar a madeira para o sacrifício, como o Senhor o madeiro da cruz.» (Paed.1,5,23).
Os Padres da Igreja insistem, portanto, na pedagogia divina: este acontecimento prefigura simplesmente um pai pronto a sacrificar o seu filho, o seu único filho. Esta exigência insuportável de Deus para com Abraão, será assumida pelo próprio Deus no Novo Testamento, ao enviar o seu Filho para o suplício da Cruz. Com este pedido terrível a Abraão, Deus prepara o povo dos crentes para perceberem o sacrifício que Ele próprio fará no momento da paixão de Cristo.
A brancura do corpo de Isaac simboliza a brancura da hóstia na obra de Rembrandt, que assim retoma a interpretação dos Padres da Igreja. Na liturgia católica, a hóstia é o pão sem fermento que o padre consagra e que os fiéis comem como corpo de Jesus Cristo.
Por outro lado, numerosos autores contemporâneos recorrem às ciências humanas para reler o relato da atadura de Isaac. Marie Balmary (1986) lê a passagem em função da sua experiência de psicanálise clínica:
Abraão não compreende a ordem de Deus. Não se trata de sacrificar, matando-o, o seu filho Isaac; o que tem Abraão tem de sacrificar é a sua própria paternidade mal compreendida, para que Isaac se possa tornar um homem adulto e livre.
Com esta experiência, Deus ajuda a Abraão a “abrir mão” do seu filho e a compreender que Isaac – mesmo sendo “o filho da Promessa” – é essencialmente um dom de Deus e que só a Ele pertence.
Uma boa lição para o exercício da nossa própria paternidade/maternidade…
4. Uma última palavra
Em última análise, esta questão do sacrifício de Isaac faz eco da questão da presença do mal no mundo e da sua relação com a existência Deus.
Este é um tema que Olivier Clément aborda na sua autobiografia espiritual, ajudando-nos a integrar o mistério do mal na força misteriosa da própria Vida:
«Como toda a gente, e por muito tempo ainda, eu tropeçava no mistério do mal e rendia-me perante uma ordem universal demasiado cúmplice do horror. Não sabia ainda que a Sabedoria original é sempre atravessada pelo trágico (em mim, para começar); que o Criador, afastado da sua criação, já não pôde entrar nela senão crucificado; que o poder da ressurreição precisa das nossas liberdades para alcançar e transfigurar o universo…»
(Olivier Clément, L’autre soleil, Desclée de Brouwer, 2010, Paris, p.58-59)
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
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