1. Como mel para a boca
Louis Amstrong canta Go Down Moses, o apelo que Deus lança a Moisés para que ele conduza o seu povo para fora do Egipto. ♪ ♫
2. Um texto bíblico
O Senhor falava com Moisés, face a face, como um homem fala com o seu amigo. (…) E disse-lhe:
– Tu não poderás ver a minha face, pois o homem não pode contemplar-me e continuar a viver.
E o Senhor acrescentou:
– Está aqui um lugar próximo de mim; conservar-te-ás sobre o rochedo. Quando a minha glória passar, colocar-te-ei na cavidade do rochedo e cobrir-te-ei com a minha mão, até que Eu tenha passado.
Livro do Êxodo 33,11.20-22
3. O esclarecimento
O Antigo Testamento coloca-nos diante de um paradoxo:
- Por um lado, Deus fala face a face com Moisés
- Por outro, o homem não pode contemplar a Deus e continuar a viver.
Isto coloca duas questões fundamentais:
- Tem Deus verdadeiramente um “rosto”?
- E podemos representá-lo em imagens?
Todas as religiões se colocaram estas questões e, de modo particular, aquelas que adoram um Deus único, as religiões monoteístas.
A resposta vai chegar em dois tempos:
- Hoje, vamos considerar o que dizem o Judaísmo e o Islão.
- Para a semana, será a vez do Novo Testamento e do cristianismo.
Isto porque as respostas são diferentes!
| No Judaísmo |
Deus não pode ser mais claro, no texto de hoje: o homem não O pode contemplar. Mas, esta impossibilidade parece derivar mais de uma incapacidade que de um interdito: de facto, o homem não seria capaz de um tal grau de intimidade. Não só porque a desproporção entre Criador e criatura é demasiado grande (ainda que o homem tenha sido criado… à Sua imagem!), mas também porque, pelo pecado, o homem se tornou incapaz de uma tal visão.
Mesmo ao nível meramente humano, como o fez notar Emmanuel Lévinas (um verdadeiro campeão da questão filosófica do rosto!), olhar alguém nos olhos é algo que evitamos que se prolongue desnecessariamente, tal é a intensidade que experimentamos e que apenas anuncia a intensidade que a relação entre duas pessoas pode ter. Experimente hoje e descobrirá: tente olhar alguém nos olhos durante 2 minutos e verá como é difícil evitar a tentação de desviar o olhar!
Se assim é entre humanos, imagine olhar Deus nos olhos!
No fundo, ao enunciar a impossibilidade de O contemplar, Deus não está senão a querer preservar o homem: tal “proibição” não é um castigo nem uma infantilização. No texto de hoje, Deus cobre com a mão os olhos de Moisés, tal como um pai que impede o filho de se lançar no fogo, tal é o fascínio que a chama exerce sobre o pequeno…
Assim, quando Deus, no Decálogo, proíbe o homem de representá-lo em imagens, fá-lo por cuidado paternal, e não apenas para evitar a idolatria. Em consequência desta interdição, não encontramos nas sinagogas qualquer representação de Deus.
| E no Islão? |
As mesquitas são, frequentemente, edifícios magnificamente ornamentados, mas não contêm jamais imagens figurativas. A razão da interdição de representação de Deus no Islão deriva da ideia que Allah é completamente diferente do resto da Criação
O Corão afirma: “Nada se Lhe assemelha” (42,11) e “nada O pode igualar” (112,4). Para a tradição muçulmana, não é possível representar Deus em imagens, menos ainda com aparência humana. Para o Islão, o homem não foi criado à “imagem de Deus”, como se diz na Bíblia.
4. E ainda uma palavra final…
Esta ideia que Deus não pode ser contemplado pelo homem atravessou os séculos e encontra um eco na cerimónia de coroação dos reis e rainhas de Inglaterra. Na série The Crown (A Coroa), Eduardo de Gales está a acompanhar pela televisão a cerimónia da coroação da sua sobrinha, a rainha Isabel II. De repente, a transmissão é suspensa e alguém lhe pergunta:
– O que é que se passa?
– É o momento da unção. O momento mais santo, mais solene, mais sagrado de toda a cerimónia.
– E porque é que não o podemos ver?
– Porque somos apenas mortais.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.
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