Perder tempo para recuperar o sentido do tempo

A lógica do dom e do perdão que o tempo festivo retoma e celebra poderá orientar os passos que é preciso dar para a atravessar. O Jubileu oferece um tempo oportuno.

A lógica do dom e do perdão que o tempo festivo retoma e celebra poderá orientar os passos que é preciso dar para a atravessar. O Jubileu oferece um tempo oportuno.

Tudo, a toda a hora, em todo o lado, escreveu recentemente Stuart Jeffries (nota1), mostrando como nos temos vindo a tornar mais consumidores acríticos do que cidadãos conscientes. Homens e mulheres pós-modernos, dessacralizados e abertos, fluidos, flexíveis e irónicos, cada vez mais sofisticados e especializados, deixou de nos constringir qualquer sentido sacral originário e último que se reconheça à vida e à história. A noção de que o tempo tenha um sentido esvazia-se. Sem qualquer ato fundador, o tempo não vai para lado algum; sem sentido anterior ou exterior a cada indivíduo e às dinâmicas sociais, simplesmente corre, e nós corremos com ele ou atrás dele, constantemente atrasados, sempre com falta de tempo. Parece, por isso, poder-se ignorar a origem e o papel da memória, dispensar o horizonte e um fim último que organize sensatamente o curso do tempo. Bastará o instante presente como lugar de realização do direito à felicidade individual que facilmente se identifica com produção e consumo, competição e sucesso – num artigo publicado no jornal Público no passado dia 5 de janeiro, intitulado “Elon Musk, a parábola de um ‘génio’”, escrevia Davide Scarso que um «individualismo competitivo» se vai elevando «ao estatuto de virtude suprema». Até para o gozo dos bens culturais passámos a usar o verbo consumir. Estranhamente, também as artes e as letras se consomem. Produzimos, portanto, e consumimos, investimos e acumulamos para crescer sempre mais. Se há progresso, é todo económico, servido pelo tecnológico. Ao mesmo tempo, lamentamos não ter o suficiente. Nunca basta o que temos. Na saúde, na escola, na justiça, na habitação, na defesa…faltam sempre recursos económicos. Entre nós, esta narrativa contabilística e utilitarista parece gerar, hoje, mais consenso do que a causa da qualidade da democracia, da fraternidade que seja verdadeiramente universal ou do cuidado da casa que partilhamos.

A experiência temporal é, porém, mais complexa e conviria salvaguardar tal complexidade como forma de cuidado da humanidade que nos é comum e dos seus ritmos mais elementares. Hoje, esta poderia ser mesmo uma parcela muito relevante do contributo que o universo religioso, de modo particular o judaico-cristão, poderia oferecer para o bem comum – pena é que, tantas vezes, a palavra pública dos crentes afunile no registo, ora moralizante, ora espiritualizante, e não cultive suficientemente nem consiga expor de forma significativa a sabedoria prática sobre dinâmicas humanas elementares acumulada ao longo de gerações e o seu alcance político.

Entre o tempo do trabalho e o tempo livre, entre o tempo produtivo e o tempo de descanso, há um outro tempo, com uma sabedoria e uma lógica próprias: o tempo festivo, aquele em que, com outros, de modo festivo, precisamente, se perde tempo para recuperar o sentido do tempo. Fazer memória e projetar, religando à verdade da existência, é a função do tempo festivo. Sem esta ordem terceira do tempo, o carácter binário do trabalho e do tempo livre, a que, desde o início da industrialização das nossas sociedades, a lógica do tempo tem vindo a ser reduzida, facilmente degenera, o primeiro, em necessidade funcional e imposição externa da qual não se pode escapar e, o segundo, em fuga temporária do trabalho opressor e procura de divertimento evasivo. Não podendo o ser humano decidir o próprio início e não tendo total domínio sobre o seu destino, a festa põe de novo em contacto com a bondade e a gratuidade da origem e da promessa das coisas últimas. Faz-se memória grata do mais essencial e necessário para relançar o futuro na confiança. A existência – o tempo e a natureza, as relações e o amor e os outros bens elementares sem os quais não vivemos bem – é recolocada no registo do dom, aquém e além do mero acaso, da produção, do comércio, da conquista. A verdade passa por aqui. Portanto, a razão também. A graça é mais originária do que o mérito, o gratuito precede o conseguido, ter recebido vem antes de poder dar, partilhar é mais originário do que comerciar.

Entre o tempo do trabalho e o tempo livre, entre o tempo produtivo e o tempo de descanso, há um outro tempo, com uma sabedoria e uma lógica próprias: o tempo festivo, aquele em que, com outros, de modo festivo, precisamente, se perde tempo para recuperar o sentido do tempo.

Como explica o teólogo Armido Rizzi, perante a dureza da necessidade que o trabalho pode exprimir e o carácter alienante que o tempo livre tende a exibir, a festa recoloca a vida no horizonte da gratuidade do necessário, da necessidade do gratuito, da beleza do essencial (nota 2). Consequentemente, da responsabilidade pelo dom recebido e do dever da partilha. Por isso, a festa é mais lugar de compromisso ético do que lugar de êxtase estético. Neste sentido, ainda nas palavras de Rizzi, «a dimensão estética não salva o mundo. O homem que se reconhece na festa bíblica diz que a beleza será o mundo salvado, mas não será a beleza a salvar o mundo. Será antes a responsabilidade pela justiça e pelo amor que o salvará» (nota3). Reconhecer e acolher a vida como dom, gera gratidão, reforça laços e responsabiliza pelo que é comum. Com outros, porque a festa é estruturalmente comunitária, recorda-se, louva-se, agradece-se e assume-se responsabilidade por um bem originário e promissor, uma dádiva primeira, incondicional e permanente que tudo traz à vida e que tudo mantém em vida. Suspendendo ciclicamente por momentos o fluir inexorável do tempo e a ação produtiva no espaço, recupera-se da tentação existencial ao esquecimento, à inveja, à ingratidão, à demissão (nota4). Ao interromper o trabalho e ao dar uma fisionomia própria ao descanso, o tempo festivo celebra a vida gratuita, própria e alheia, recuperando o que lhe é mais elementar e necessário. Assim se assume responsabilidade por ela. A beleza que a festa celebra é a do mundo salvaguardado – salvo pelo cuidado, assim mesmo.

Este longo preâmbulo vem a propósito do Jubileu que a Igreja Católica celebrará ao longo de 2025, porque é com a lógica do tempo sensato e com a forma responsável como se age no tempo que o Jubileu tem a ver. Este ano, trata-se do 27º Jubileu Ordinário, que, desde o século XV, acontece de 25 em 25 anos, tendo sido o primeiro proclamado em 1300 (nota5). O Papa Francisco convocou-o a 9 de maio de 2024 com a Bula Spes non confundit e quis pô-lo, precisamente, sob o sinal da esperança que não engana. As “portas santas” que se têm aberto desde o início do ano ficam como símbolo performativo de passos coerentes de conversão e de passagens promissoras.

As “portas santas” que se têm aberto desde o início do ano ficam como símbolo performativo de passos coerentes de conversão e de passagens promissoras.

Com a santificação do domingo, o primeiro dia da semana, a tradição cristã retomou a tradição hebraica que identificava o sábado como o centro do tempo semanal (há um dia em que não se trabalha, se abstém de produzir e de comerciar e se consome o que se produziu antes), a páscoa como centro do tempo anual (Deus criador age na história salvando), o jubileu como centro da sucessão das gerações (de 49 em 49 anos – 7×7 –, vive-se um tempo em que a terra, da qual Deus é o único senhor, repousa e os escravos readquirem a liberdade). Invenção medieval, o Jubileu cristão recupera e repropõe para o ciclo de uma geração a lógica semanal do sábado/domingo que é outra em relação à da posse e da produção, da conquista e do mérito, do crédito e do débito. A graça – a abundância, a gratidão, a gratuidade – diz o sentido do tempo e pode dar uma forma justa à vida individual e coletiva. Viver bem o presente com outros, sobre a terra recebida como casa, pede memória do bem recebido, arrependimento do mal praticado – recuperando a lógica do dom, abre-se espaço para o perdão pedido e concedido –, projeção do futuro como promessa.

É muito o que se joga no Jubileu como tempo extraordinário propício para que a forma ordinária da vida se confronte criticamente com a avidez da posse e a obsessão do crédito e recupere o dom e o perdão como seu princípio e fundamento. Será um propósito ingénuo, sem alcance social e político, atendendo às grandes lógicas que determinam a geopolítica mundial e a nossa vida coletiva? Não seria certamente se, como apela o Papa na sua Bula, levasse a atender convenientemente à causa dos doentes e dos idosos, dos migrantes e dos pobres, das dívidas públicas dos países mais pobres e das penas dos reclusos. Mas, mesmo que tal não acontecesse, voltar a considerar a gratuidade do necessário, a necessidade do gratuito, a beleza do essencial é uma necessidade para permanecermos humanos, responsabilidade à qual, cada um ao seu modo, não deverá renunciar.

Paul Krugman, prémio Nobel da Economia em 2008, despediu-se recentemente  da coluna que teve durante 25 anos no The New York Times, escrevendo sobre como encontrar esperança numa era de ressentimento. Também na economia mundial, na política internacional, no conserto das nações, parece importante manter aberta a porta da esperança. A lógica do dom e do perdão que o tempo festivo retoma e celebra poderá orientar os passos que é preciso dar para a atravessar. O Jubileu oferece um tempo oportuno.

 

1. Lisboa: Zigurate, 2024
2. Cf. Il problema del senso del tempo. Tempo, festa, preghiesa (Assis: Citradella, 2006), 75-84.
3.  Ib., 81.
4. Cf. Andrea Grillo, Tempo graziato. La liturgia come festa (Pádua: Messaggero, 2018), 39.
5.  Cf. Bula de Proclamação do Jubileu Ordinário do Ano 2025, Spes non confundit, de 9 de maio de 2024. Para uma breve resenha histórica dos jubileus, veja-se: https://www.iubilaeum2025.va/pt/giubileo-2025/giubilei-nella-storia.html

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.


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Esta secção é da responsabilidade da revista Brotéria – Cristianismo e Cultura, publicada pelos jesuítas portugueses desde 1902.

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