Todos ficaram cheios do Espírito Santo… (Atos 2,4)
C. S. Lewis, o afamado escritor britânico do século XX, autor da saga As Crónicas de Narnia mas que não restringiu os seus créditos literários ao mundo do fantástico, afirma no seu ensaio Miracles: a preliminary study que o milagre central do cristianismo é a IN-CARNAÇÃO.* Para Lewis, «qualquer outro milagre prepara para este, manifesta-o, ou dele resulta». Chega mesmo a defender que nenhum outro milagre faz sentido se não estiver relacionado, ou mesmo dependente da IN-CARNAÇÃO. Quase poderia parecer uma leitura alternativa à grande afirmação paulina: «E se Cristo não ressuscitou, então a nossa pregação é inútil e a vossa fé é inútil também» (1 Coríntios 15,14). Só não o é, Lewis também o deixa claro, porque sem IN-CARNAÇÃO não poderia ter havido, primeiro, a morte, e depois, a ressurreição de Jesus, o Cristo. Aliás, esta dependência, lógica mas de natureza quase ontológica, só ajuda a reforçar o argumento lewsiano.
Um ser divino que desce do seu dourado pedestal para dar umas quantas lições de moral aos infames e caídos seres humanos não é coisa difícil de identificar no concerto das religiões. Mesmo as hierofanias e teofanias de Eliade são alcançáveis e enquadráveis no domínio da razoabilidade. Porém, ao fim de mais de dois mil anos da Natividade continua a ser árduo compreender esse Deus que se contaminou a ponto de cingir-se por completo de uma sarx rejeitada pelos mais bem intencionados ascetas. Mesmo os cristãos, com mais ou menos “mistério” nas suas construções teológicas e dogmáticas, conseguem resolver este dilema acrescentando um conveniente “ponto final”: ou seja, Jesus nasceu, viveu, morreu, ressuscitou… mas ascendeu aos céus. E, assim, habita de novo junto do Pai! O ciclo ficaria completo e o ser divino como que “purificado” dessa temporária ousadia a que se decidiu chamar IN-CARNAÇÃO.
Estranho Deus este, revelado nas narrativas dos evangelistas – Atos dos Apóstolos incluído – que parece escolher momentos de grandes movimentações para definir instantes que se projetam na eternidade. O narrador descreve o nascimento de Jesus em Belém numa época de tamanha circulação de pessoas que Maria e José não conseguiram «arranjar lugar em casa» (Lucas 2,7). Décadas mais tarde, a menos de dez quilómetros de distância, na faustosa Jerusalém de traça herodiana, o povo, prosélitos incluídos, acotovelava-se na sua Festa das Semanas, que em grego se chamou de Pentecostes. “Das semanas” porque se realizava sete semanas depois da maior das festas judaicas; “Pentecostes” porque ocorria cinquenta dias depois dessa Páscoa; o objetivo: «Apresentarás ofertas, conforme a produção que o Senhor, teu Deus, te tiver concedido. E celebrarás com alegria a festa diante do Senhor, teu Deus…» (Deuteronómio 16,10-11).
Aquele povo que os escutava já não era mais o grupo exclusivo e homogéneo que tinha recebido a Lei no Sinai. Eram muitos, da Galileia mas também «… da Pártia, da Média, do Elam, da Mesopotâmia, da Judeia, da Capadócia, do Ponto, da Ásia, da Frígia, da Panfília, do Egito e das regiões da Líbia que ficam perto de Cirene. Alguns vieram de Roma. Uns são judeus e outros aceitaram a religião dos judeus. Alguns, ainda, vieram de Creta e outros da Arábia…» (Atos 2,9-11)
O Pentecostes não teria certamente entrado no calendário cristão com tal projeção se aí não ficasse demonstrado que o tal “ciclo” não se encerrara sete dias antes com a ascensão de Jesus. O Deus que desceu para se tornar carne em Cristo é também o Deus que desce para se tornar espírito, cumprindo a promessa do próprio Jesus: «E eu hei de pedir ao Pai que vos envie um outro para vos ajudar, o Espírito da verdade, que há de viver para sempre convosco» (João 14,16). Naquele dia, sem que muitos dos transeuntes provenientes de todas as partes do Império se apercebessem, um novo tempo estava a surgir. O grupo de apóstolos, entretanto reconfigurado a “os doze” com a eleição de Matias (Atos 1,26), simbolizava o “novo Israel”, preparado para desempenhar uma missão que não mais se circunscreveria a uma etnia, a uma língua, a uma terra, mas que cumpriria o objetivo de fazer chegar esta mensagem «até aos lugares mais distantes do mundo» (Atos 1,8). Aquele povo que os escutava já não era mais o grupo exclusivo e homogéneo que tinha recebido a Lei no Sinai. Eram muitos, da Galileia mas também «… da Pártia, da Média, do Elam, da Mesopotâmia, da Judeia, da Capadócia, do Ponto, da Ásia, da Frígia, da Panfília, do Egito e das regiões da Líbia que ficam perto de Cirene. Alguns vieram de Roma. Uns são judeus e outros aceitaram a religião dos judeus. Alguns, ainda, vieram de Creta e outros da Arábia…» (Atos 2,9-11). Surpreendentemente, perante tal diversidade, a tragédia de Babel reverteu-se. Babel foi desobediência, Pentecostes foi dependência; Babel foi dispersão, Pentecostes foi reunião; Babel foi confusão, Pentecostes foi compreensão. Porque o Espírito era um e dele todos se encheram.
Se a Natividade representa a IN-CARNAÇÃO do ser divino, o Pentecostes simboliza a sua IN-SPIRITUAÇÃO. Em Cristo, a Natividade é permanente – «Tu és meu filho; desde hoje sou teu pai» (Salmos 2,7) – pelo que é desafio do crente tornar de igual modo perene o Pentecostes. O ciclo não se fechou. O Deus que desceu em carne, desce também para nós em espírito e nisso não há confusão.
* Embora a forma que esteja dicionarizada em língua portuguesa seja “encarnação”, decidimos grafar a palavra assim para melhor se compreender o seu significado e argumento do texto.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.